Entre Lobos e Serpentes Episódio 7 – "Jacaré no seco anda?"

Tang
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A menina descia a colina, pulando e dançando. Na mão direita ela segurava uma casta de palha, nela havia flores, ervas e alguns ovos do galinheiro. Ela rodou a saia com muita graça, murmurando uma canção que aprendera com a tia Anastácia, entre muitas, essa acabou virando sua favorita. Tinha algo de apaixonante naquela letra que a deixava fascinada.
"Se essa rua

Se essa rua fosse minha

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas

Com pedrinhas de brilhante

Só pra ver

Só pra ver meu bem passar"

Os pés descalços pisam em muitas pedras pelo caminho, mas a menina mal podia senti-las, seus pés já estão calejados, pois, ela cresceu no sítio de sua avó, e está acostumada a encontrar muitas pedras em seu caminho.

Narizinho gosta de percorrer pelas terras do sítio, colhendo ovos no galinheiro, algumas frutas dos pomares, e também as ervas do Jardim. A menina é feliz, pois ainda lhe resta algo de sua velha inocência, não muito, mas ainda lhe resta um pouco. E esse pouco é suficiente para fazê-la feliz, tudo no mundo é mais alegre quando se é criança. 

Era fim de tarde, e os pomares estavam carregados de frutas. O dia estava claro, e Narizinho estava feliz.

Ela avistou um pequeno lago, que era uma extensão do rio das águas claras. O percurso da água fazia um longo trajeto até mata adentro, onde Narizinho não tinha coragem de entrar. Aconteciam coisas estranhas naquela parte da floresta, e Narizinho sabia disso muito bem.

Ela passou pelo rio, e foi descendo a colina em direção ao manguezal. Agora ela estava se afastando mais do sítio de sua avó, seguindo a trilha de terra, que a levaria direto ao pé de jabuticabas. Ela queria colher algumas frutas antes de voltar para casa. 

Aquela área era o início de uma turbulenta mata fechada, era o máximo que ela poderia ir. A menina apertou o passo, andando um pouco mais depressa, estava escurecendo, e a floresta podia ser muito assustadora ao cair da noite.

Há uma lenda que o velho Barnabé gosta de contar para as crianças do sítio, ele diz que o Saci sempre desperta de seu sono ao por do sol. Ele é um moleque travesso, gosta de pregar peças em quem estiver por perto. Para ele é algo divertido, mas para a vítima pode não ser tão legal assim, suas brincadeiras eram perigosas.

Narizinho não quer estar por perto quando ele acordar.

Chegando ao fim da trilha, o manguezal traça um limite entre o Rio das águas claras e a mata fechada que fica logo em frente. Aquela parte da floresta era assustadora, e o terreno já não fazia parte do sítio de sua avó. Mas era ali que ficava seu pé de jabuticabas favorito, ele estava sempre carregado das frutas, independente da época do ano, e seu fruto era muito doce, delicioso. 

Aquele lugar costumava ser o refúgio de Narizinho e Pedrinho, era ali que eles se escondiam quando as coisas ficavam complicadas.

O pé de jabuticabas era enorme, cobria a paisagem com sua beleza. Em frente ficava o início da mata, que era tão bela, quanto assustadora. E atrás ficava a extensão do Rio, que estava sujo, mas enchia a paisagem com aquele som sereno e encantador.

O lugar era tão bonito.

Ela viu que a noite estava chegando, e desejou que seu primo estivesse ali com ela, para lhe fazer companhia. 

A jabuticabeira estava carregada. Narizinho deixou a cesta no chão, numa posição propícia para que ela possa jogar as frutas lá do alto, sem que elas caíam no chão e estraguem. 

Enquanto subia no pé de jabuticabas, ela cantava mais uma daquelas canções que aprendeu com a Tia Anastácia. Essa era engraçada, um pouco boba, mas Narizinho gostava dela, pois lembrava muito sua velha infância.

"Palma, palma, palma. Pé, pé, pé. Roda, Roda, roda, caranguejo peixe é!"

______________

No rio das águas claras, que naquele momento estava mais sujo do que nunca, uma coisa jacaré despertou de um sono profundo, e começou a nadar lentamente, espreitando, esperando o momento propício para dar um bote. Seus olhos eram amarelos, e sua pele era verde musgo, a criatura estava camuflada nas águas do Rio, Narizinho não a teria visto nem se ainda fosse dia claro. 

O por do sol havia chegado, e, sentada nos galhos da jabuticabeira — devorando uma jabuticaba atrás da outra, narizinho tinha uma visão linda do horizonte, era tão belo que, por um momento, ela se esqueceu que estava ficando tarde demais, e tinha que voltar para casa. Ela continuava cantarolando, com sua voz doce e agradável. Para a coisa jacaré, aquilo era insuportável.

Antes da menina aparecer, a coisa jacaré estava descansando, quase hibernando, pois, ela só caça suas vítimas na escuridão da noite, enquanto eles dormem. Mas Narizinho a acordou com aquela cantoria infernal, e agora pagará por interromper seu descanso, pagará sim!

A coisa jacaré observava atentamente a menina, seu corpo estava completamente mergulhado no Rio, com apenas seus olhos para fora, observando-a. Ela sabe como ninguém se esconder nas sombras da noite, e também nas águas profundas dos pântanos. 

É uma bruxa, especialista em ilusionismos, pode facilmente enganar sua vítima, fazê-la ver coisas que não existem, sua magia faz com que sonho e realidade se misturem de acordo com a sua vontade. A realidade também é interessante, mas ela gosta mesmo é de atacar nos sonhos, pois as pessoas são frágeis quando estão dormindo, embora, os sonhos sejam abstratos, e a vítima também tem o poder de fazer qualquer coisa contra a bruxa do sono (se estiver lúcida e consciente do que está acontecendo). Isso dificilmente acontecia, pois as pessoas ficavam assustadas demais para reagir, mas essa era a fraqueza da Bruxa do sono, e ela tinha que tomar muito cuidado ao selecionar suas vítimas. Era divertido, mas também perigoso.

Mas, naquele momento, Narizinho estava acordada e completamente desprotegida. 

Os olhos amarelos da coisa agora estavam enormes, eles brilharam, e sua magia fez com que sonho e realidade se tornassem um só. Ela é especialista e criar ilusões.

Narizinho continuava devorando as jabuticabas, estavam deliciosas. De repente, ela ouviu um piar de passarinho, bem alto, bem forte, havia algo naquele som que deixou ela assustada, era um som de desespero, quase como um pedido de socorro. Ela ouviu outro piar, seguido de outro, e mais outro. O passarinho estava quase gritando. Narizinho olhou em volta, procurando, queria saber de onde estava vindo aquele som, mas naquele momento não conseguia identificar sua origem.

De uma coisa ela tinha certeza, o passarinho estava ferido, gravemente ferido.

— Ele deve ter caído do ninho. Oh, droga!

Ela desceu do pé de jabuticabas, num pulo, com rapidez, e olhou pelo chão procurando por um passarinho ferido, provavelmente com uma das asas quebrada. Ela o levaria para a casa de sua avó, e cuidaria dele.

A coisa jacaré estava se preparando para emergir das águas, ela atacaria, sem dúvidas. Narizinho estava ocupada demais para ver os perigos que a cercavam naquele momento, A distração estava funcionando. 

"Oh! Como as meninas são fáceis de enganar"

A bruxa fez o passarinho gritar novamente, e dessa vez Narizinho identificou a origem do som. Ele vinha de trás da jabuticabeira, por isso que ela não o tinha visto de primeira. Ela pegou a cesta de palha e deu a volta na árvore, agora, ficando de costas para o Rio, onde a coisa jacaré estava escondida, como um crocodilo silencioso, pronto para atacar.

O que havia atrás da jabuticabeira era uma gaiola de metal, muito, muito pequena. O passarinho estava preso nela, gritando, pedindo por socorro. A gaiola era tão pequena que ela mal podia bater suas asas. E as grades eram feitas de arame farpado, elas o estavam machucando. Havia sangue e penas para todo lado.

Narizinho pôs a mão na boca, horrorizada. Ela pôde perceber que o passarinho era um sabiá adulto, grande demais para aquela gaiola tão pequena. Ele estava desesperando, tentando sair, e as grades de arame farpado estavam cortando todas as suas penas. Ele tinha uma aparência horrível. 

A coisa jacaré emergiu das águas, atrás de Narizinho, mas a menina não percebeu, pois, a Cuca era silenciosa como a noite. 

Narizinho se ajoelhou em frente a gaiola, tentando libertar o sabiá. Mas percebeu, com certa preocupação, que não havia nenhuma abertura, a gaiola era completamente fechada, não tinha jeito de entrar, nem sair.

O passarinho começou a piar mais alto agora, ele gritava. E aquele som era horrível para Narizinho, aquilo a estava assustando, era como um grito, num pesadelo. Mas ela não poderia deixar o sábia preso ali, ele acabaria se matando nos espinhos da grade. Narizinho nunca iria se perdoar se fosse embora e o deixasse preso naquela gaiola.

Ela se perguntou quem poderia ter feito uma monstruosidade como aquela.

A coisa jacaré estava mais perto agora. Ela se arrastava pelo chão, parecendo uma serpente. Ela tinha um corpo humanoide que lembrava o de uma mulher, e uma profusão de cabelos loiros em sua cabeça. Os olhos amarelos estavam enormes, fixos nas costas da menina. 

A bocarra foi se abrindo lentamente, revelando dentes enormes e afiados, era a boca de um jacaré, mas sua língua era de cobra. E a saliva era veneno puro! A coisa babava muito, e o chão do manguezal se enchia de seu veneno.

Narizinho percebeu que havia algo de errado quando o passarinho ficou completamente imóvel, de repente, em silêncio. O desespero do sabiá havia desaparecido, e ele ficou parado na gaiola, como uma estátua de pedra.

O passarinho ficou gelado, os olhos perderam a cor e as penas estavam rígidas, perderam sua antiga beleza. A ilusão da Bruxa do sono estava chegando ao fim.

Narizinho pegou um galho de árvore que estava jogado no chão e usou para cutucar o passarinho, delicadamente, para não machucar. Mas ficou horrorizada quando o tocou e percebeu que não existia vida naquele passarinho. Sua pele era dura e fria, ele não se mexia mais, porque era feito de pedra.

A gaiola inteira era feita de pedra, mas Narizinho podia jurar que a pouco tempo atrás era feita de metal. O passarinho que gritava de desespero agora não passava de uma estátua de pedra, sem vida, completamente imóvel no poleiro. 

O passarinho não gritava mais. Narizinho ficou aliviada, pois o grito dele a estava deixando arrepiada dos pés a cabeça

Ela se perguntou se não havia imaginado aquilo tudo, achou que podia estar sonhando, era possível que ela tenha caído no sono enquanto devorava as jabuticabas. Ela podia ainda estar sentada no galho da jabuticabeira, e aquilo não passava de um pesadelo. Seria possível?

A noite estava chegando, e algumas estrelas já brilhavam no céu.

Com aquele silêncio repentino, ela pôde ouvir um barulho baixinho, vinha de trás dela, era o som de algo se arrastando, lentamente, folhas sendo esmagadas e galhos sendo quebrados. Narizinho ficou paralisada, em choque. Aquilo era rasteiro, parecia uma cobra, mas não era exatamente do tamanho de uma cobra, ela soube que aquilo era bem maior e mais pesado. Os sentidos de Narizinho estavam mais aguçados agora, e ela sentiu a presença de algo bem grande atrás dela. 

Agora ela tinha certeza que, fosse o que fosse, aquela coisa estava se aproximando lentamente, já a algum tempo, e agora estava bem perto, muito perto. 

Ela se virou. Teve poucos segundos para ver quem (ou o que) estava atrás dela, e subitamente ela percebeu que a forma daquela coisa era horrenda, aquilo era uma mulher (mas não era exatamente), ela tinha traços de um jacaré enorme, de cabelos loiros e pele verde, escamosa. Tinha também língua e olhos de cobra. Era um monstro.

A bocarra da coisa jacaré estava aberta, e os dentes eram enormes, de sua língua expelia uma quantidade significante de veneno. Ela se levantou e atacou Narizinho.

E o velho mundo que a menina conhecia sumiu, desapareceu, virou total escuridão. Nada sobrou dela.

A gaiola do passarinho (que não passava de uma ilusão criada pelo monstro), era, na verdade, uma pequena pedra, comum, que estava jogada por ali, havia várias outras como ela espalhadas pela floresta. A bruxa do sono manipulou Narizinho, a menina estava sob hipnose, quase adormecida, e nem percebeu. 

A coisa jacaré voltou se arrastando para o Rio. Ela estava satisfeita, e agora queria descansar. Como uma serpente ela foi se arrastando, e assim que entrou nas águas do rio, ela adormeceu.

Continua...


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