"Faça seu pedido, mas tome cuidado com o lado oposto!"
_________________A assombração estava na casa, andando lentamente, para que Rendall não perceba sua presença. O corpo estava em estado avançado de decomposição, exalava um cheiro muito forte de podridão e morte.
Fisicamente se parece com o avô de Rendall, que havia sido um homem branco, mas agora, devido à decomposição da carne, sua pele era quase tão escura quanto a noite. O olho direito estava ainda mais escuro e tinha uma protuberância carnuda considerável ali, era o câncer, que havia matado Gilberto Clark de forma lenta e cruel, há tantos anos atrás.
Ele foi caminhando até o corredor, a passos lentos, demorou dois minutos até ficar frente a frente para a porta do banheiro, que estava aberta, e a moeda jazia no chão, na vertical.
Rendall se preparava para sair do banho.
O Olho moveu-se para cima, afim de se comunicar com a assombração. Ela, que é um pesadelo gerado pela moeda, entendeu perfeitamente a mensagem – "assuste-o! Faça com que ele tenha medo até da própria sombra, e depois volte para o poço".
Abertura;
_________________
Rendall desligou o chuveiro e puxou uma toalha que estava fora do box (uma cortina velha, presa por um cabo de vassoura), foi quando ele percebeu a presença de um homem, que estava parado na porta do banheiro.
Pela cortina do "box" não dava para identificar quem podia ser aquele homem, Rendall enxergava apenas uma sombra borrada, sem muita visibilidade, mas, ainda sim, ele pôde perceber que o homem olhava em sua direção.
Seu coração disparou, seu sangue ficou gelado, de repente, ele levou um choque tão grande que achou que fosse morrer de susto. Um grito estava preso em sua garganta, ele não conseguia ter qualquer reação, pensou que fosse sufocar.
Apenas cinco segundos se passaram, mas para Rendall foi um momento eterno. Após muito esforço, ele conseguiu dizer algo;
– Quem... Quem é você? O que quer na minha casa?
A assombração não respondeu. Ela simplesmente entrou rapidamente no banheiro, avançando na direção de Rendall, e antes que ele pudesse ter qualquer reação, foi agarrado por duas mãos frias e geladas, um cheiro de carne podre invadiu sua cabeça, Rendall achou que fosse vomitar.
Rendall tentou correr, mas acabou caindo no chão do "box". O cadáver estava em cima dele agora, tentando arranhar os olhos de Rendall com unhas enormes e sujas.
O cadáver conseguiu arranhar o olho esquerdo de Rendall, com bastante força, um filete de sangue desceu por ali, e Rendall passou a ter uma pequena mancha em seu campo de visão.
A cortina do box foi arrancada da parede, e Rendall finalmente pôde olhar no rosto do homem. Mas não era um homem, era um cadáver, seu rosto estava completamente podre, muito escuro, e fedia igual a um rato morto; Rendall reconheceu aquele semblante, ainda que estivesse cadavérico, era o rosto de seu falecido avô, Gilberto Clark. Sim, era ele, Rendall tentou gritar, mas nada saiu de sua garganta, ele estava apavorado.
As mãos do cadáver desceram até a garganta de Rendall e apertaram com bastante força. O cadáver de Gilberto abriu a boca para falar algo, e um cheiro ainda pior saiu de sua boca, Rendall achou que fosse desmaiar se não conseguisse se safar logo daquele martírio;
– Você não devia ter pego a moeda, Rendall – disse o cadáver de Gilberto, ainda apertando a garganta de Rendall – Eu a joguei o poço para que ninguém pudesse encontrá-la, mas você foi lá e a pegou de volta. Maldito!
A voz do cadáver era grave, muito grossa, e um pouco metálica. Semelhante à voz do sol-moeda do sonho de Rendall.
O cadáver continuou apertando a garganta de Rendall. E ele, que tanto tentava se levantar, quanto se livrar das garras da assombração, mal conseguia raciocinar direito, estava em choque.
___________________
A moeda ainda estava parada na porta do banheiro. O Olho virado na direção de Rendall, observando.
___________________
– Você não é meu avô! – Rendall gritou, apertando as mãos do cadáver com muita força, livrando um pouco o peso em sua garganta – Você é um pesadelo criado pelo Olho! Você é a moeda!
– Eu sou o que sou! – disse o cadáver – e estou aqui para realizar seu desejo!
Rendall usou os pés para derrubar o cadáver, que escorregou facilmente, pois o chão do banheiro estava muito molhado.
Ele se levantou e correu na direção da porta, mas o cadáver agarrou os pés de Rendall e o fez cair com força no chão.
O mundo escureceu, Rendall ficou deitado no chão, ele sabia que algo de errado tinha acontecido após essa última queda, mas, de início, não entendeu o que podia ser. Só sabia que primeiro levou um choque, tudo ficou branco, e depois, tudo ficou escuro.
Ele olhou em volta, sua visão estava bastante debilitada, era quase nula, mas ele percebeu que o cadáver de seu avô tinha simplesmente desaparecido. Era só mais um pesadelo, afinal.
Algo molhado desceu pelo seu rosto, era um líquido quente e espesso, Rendall pegou um pouco com a palma da mão e olhou o que era – Sangue! – ele disse – mas o quê?
Então veio a dor, uma forte pressão no olho direito. Não o olho que o cadáver havia arranhado com as unhas, aquele estava dolorido, e sua visão estava borrada por causa do arranhão, mas esse era o esquerdo, o problema agora era no olho direito.
E ele entendeu que tinha machucado o outro olho quando caiu no chão.
____________________
A moeda não estava mais no chão do banheiro.
____________________
Ele foi até o espelho, e num susto, percebeu que havia algo metálico cravado no seu olho. A metade do objetivo estava para fora, mas a outra metade afundou completamente no crânio de Rendall. Estava sangrando muito agora, e o olho dele ficou completamente vermelho. Já estava ficando um pouco inchado.
Era a moeda.
Rendall gritou. Pulou para trás e caiu de costas para a parede. Ele estava agonizando, suspirando num ritmo bem rápido. Ele sentia algo pressionando seu crânio, e sabia que estava perdendo muito sangue.
Tentou segurar a moeda e puxar para fora, mas não deu certo, além de provocar muita dor, pôde sentir a moeda afundando um pouco mais em sua cabeça.
Sua visão estava péssima. O olho direito estava completamente cego, e o esquerdo não passava de um borrão cinza, aquele maldito cadáver conseguiu ferir seu olho gravemente.
Só agora Rendall percebeu a gravidade da situação.
Mas antes de qualquer coisa ele precisava tirar aquela maldosa moeda que estava cravada pela metade em seu olho. A dor em seu crânio era enorme. Ele mal podia pensar.
__________________
Rendall levantou-se lentamente, ofegante, ele foi se guiando pelas paredes do banheiro e conseguiu encontrar a porta.
Chegou ao corredor e andou em direção a cozinha. Precisava encontrar a caixa de ferramentas.
Sua visão estava péssima. Ele devia estar 90% cego, talvez um pouco mais – O que vou fazer da minha vida a partir de agora? – ele se lamentou – Não tenho ninguém por mim...
Ele chegou na cozinha e avistou, com muita dificuldade, a caixa de ferramentas em cima da mesa.
Abriu ela e pegou o alicate velho de seu avô, estava bastante enferrujado, mas iria servir para o que ele pretendia fazer.
Nesse momento, ele podia jurar que sentiu a moeda se movendo, em seu olho direito, ele sentiu um movimento leve. Foi nesse momento que ele se lembrou do Olho, O Olho que invadiu seus sonhos, e que lhe causou tantos pesadelos, O Olho era responsável por toda aquela desgraça.
– sua maldita desgraçada – ele disse, apontando o alicate na direção da moeda – vou te mostrar uma coisa.
De supetão, ele segurou a moeda usando a ponta do alicate e puxou com toda força. A moeda saiu. E uma explosão de dor irradiou em sua cabeça, Rendall gritou muito, jogou o alicate na mesa, e a moeda ainda estava presa a ele.
Ele tapou o olho direito com as duas mãos. Vários filetes de sangue estavam descendo por entre seus dedos.
Momentos depois, ele ainda gritava, de dor, de raiva, e principalmente de frustração – AAAHH ESTOU CEGO – ele disse – PORRA, ESTOU CEGO!
A moeda virou-se na direção de Rendall, e O Olho ficou observando seu total e completo desespero.
________________
Sim, Rendall ficou 96% cego, o arranhão em seu olho esquerdo foi mais grave do que ele imaginava, as unhas do cadáver estavam imundas e houve uma infecção interna relativamente grave. Por ele, mal se podia enxergar, a não seu um borrão cinza claro que cobria quase todo o campo de visão.
O olho direito, foi completamente esmagado pela moeda, estava inteiramente inutilizado.
Rendall conseguiu se arrastar até a casa do vizinho mais próximo, que ficava distante de sua fazenda, de modo que ele levou praticamente a noite toda para alcançar seu destino.
Chegando lá, conseguiu ajuda e foi levado ao hospital da cidade, onde passou por três cirurgias.
Deu tudo certo, mas sua visão não foi recuperada.
___________________
Na semana seguinte, o vizinho de Rendall o ajudou a resolver questões jurídicas envolvendo sua aposentadoria por invalidez. Rendall mora sozinho e não pode cuidar de si mesmo, muito mesmo trabalhar em qualquer coisa que seja. Ele conseguiu o benefício, bastou provar que, de fato, é um homem cego.
Foi mexendo em coisas envolvendo o financeiro, que Rendall descobriu ser recebedor legal da poupança que seu avô, Gilberto Clark, havia deixado em vida. Ele não tinha idéia desse dinheiro, mas o pegou e usou para consertar coisas em sua casa.
__________________
Rendall, agora é um homem que tem uma situação financeira relativamente confortável. Em seu celeiro, inaugurou um novo telhado, e já tinha encomendado as primeiras galinhas que morariam ali.
Sentado em frente a sua casa, usando um óculos escuros e uma bengala, ele aguarda o homem da tapeçaria, que viria para trocar os estofados da sala.
Ele pensou na moeda, e no pedido que havia feito a ela; Rendall pediu dinheiro, suficiente para reformar sua fazenda. O dinheiro chegou, mas claro que ele teve de pagar um preço por isso.
O Olho lhe concebeu um pedido, afinal.
– Sua maldita desgraçada! – ele disse, chorando um pouco, ignorando a dor que ainda sentia no olho direito.
_________________
Na noite em que Rendall arrancou a moeda de seu olho e foi correndo buscar ajuda na casa do vizinho, ele não pensou no que faria com a moeda, apenas se foi.
Mas isso seria inútil, pois a moeda não pertence a ninguém, ela tem vontade própria.
Ela vibrou, soltou-se da ponta do alicate e se ergueu, ficou novamente na vertical. O Olho procurou onde fica a direção da porta de saída, e foi seguindo por aquele lado, rolando lentamente sob a mesa. Quando chegou na base, caiu no chão, levantou-se novamente, e seguiu seu trajeto.
Momentos depois, ela estava do lado de fora, ainda rolando. Lentamente ela deu a volta na casa e seguiu para o terreno dos fundos, indo na direção do poço.
Voltaria para casa.
Ela se esconderia na escuridão das águas, ficaria imersa no poço, até ser encontrada novamente.
__________________
"Eu sou o que sou – disse O Olho..."
Postar um comentário
0Comentários