Aos quarenta anos de vida tive a compreensão que divagar sobre a vida deveria ser um processo de autoconhecimento a ser feito olhando para a inexistência de um passado que supostamente já não existe mais. Não enxergo futuro para o meu corpo, pois a vida que há em mim vai-se esvaindo talhe qual a juventude que anda na contramão do tempo. Minhas costas doem e tenho uma dorzinha chata e crônica no ouvido esquerdo que só falta deixar-me louco. O Doutor disse ser resultado do mal uso de fones de ouvido ao longo dos anos. Houve uma época em que eu gostava de escutar música no volume máximo para evitar ouvir meus próprios pensamentos. Hoje, tudo o que faço é escutar o que minha mente tem a me dizer, o fluxo de pensamentos costuma ser interessante, deveras confuso. Apesar de, quase sempre, não chegarem a lugar nenhum. Todas as dúvidas em mim nascem do pensar. Pensar não me dará as respostas que procuro, somente trará novas dúvidas referentes ao que estou fazendo nesse mundo. Quando falo comigo, estou falando com o passado antes de mim, quando a consciência era pura energia e eu não tinha por que me preocupar com o que aconteceria a meu corpo quando a velhice chegasse, até porque, não havia corpo algum. Tudo era tão somente energia, tinha todas as respostas na ponta da língua e nem me dava o trabalho de respondê-las a quem quer que seja, guardava-as para mim. Tudo era tão somente para mim.
Quando penso no passado, penso em mamãe. Foi através dela que vim a esse mundo, o portal entre as duas dimensões a que tenho conhecimento estava em seu corpo e fui seu hospedeiro até que tivesse autonomia para virar-me sozinho aqui desse outro lado. A pergunta que me faço é o porquê tive que vir para cá, se aqui de nada sei. Minha mente fica se equilibrando entre o desconhecido e a ilusão daquilo que acho que conheço. O mundo é ilusório e tudo aqui já me parece tão prosaico que meu desinteresse por esse lugar só aumentou desde meu último aniversário. Já tive quarenta aniversários e contando. Consigo prever as coisas que ainda me acontecerão, tudo aqui é tão previsível que ficou fácil adivinhar os próximos passos, percebo o padrão dessa configuração, seja lá quem estiver escrevendo esse roteiro não está fazendo um bom trabalho em surpreender-me, talvez não seja essa sua intenção. Mas quero deixar de tantos floreios, a mim o futuro não interessa de nada, portanto, já podemos parar de falar sobre ele e mudar de assunto. Voltemos ao passado. Tudo o que há de bom em mim herdei de mamãe. Ela que foi uma mulher medíocre em sua simplicidade e que por isso foi colhendo frutos podres ao longo dessa jornada que chamamos vida. Não tenho culpa da causa, mas sentia que tinha culpa no efeito. Ela não planejou seu futuro, não tinha estudo e para sobreviver teve de aceitar empregos subdesenvolvidos que pagavam pouco e muito a humilhavam. Mas sua personalidade era lúdica e mamãe tinha um desapego enorme pela vida, por tudo o que fosse matéria, não pensou no futuro porque para ela, o futuro era algo que ainda não existia, pensar no futuro era chegar em lugar nenhum. E se ela não está lá, onde mais estaria?
Por que pensaria? Planejamento sem causa ou efeito. Sujeito a mudanças sutis, mas indiferentes, seu futuro era certo. Porém, jamais seria moldado, então estaria sempre errado. Por outro lado, seu passado era concreto por já estar escrito. Apesar de apresentar certa inconsistência de memória por ser altamente manipulável pela imaginação introspectiva de mamãe e que dela felizmente herdei. Sua infância fora feliz segundo o que diz sua memória, lembro-me de quando era ainda um fedelho e mamãe me contava prosas de seu falecido pai, que aparentemente — ''era um homem monossilábico, mas cheio de boas histórias'' — disse ela, perdida em pensamentos e com um sorriso jovial no rosto. Quase sempre esfregava o pano de prato no rosto, disfarçando que estava naquele momento limpando as lagrimas nostálgicas de saudades que sentia de seu pai. Era nítido que por ele só sentia amor. Houve, porém, outro episódio cuja lembrança lhe trouxe dor e tristeza, foi quando, anos mais tarde, sem intenção de magoá-la, perguntei-lhe o que era aquela cicatriz transversal que ela exibia no braço esquerdo, tinha certa profundidade e nunca se curou por completo. Mamãe a encarou e ficou novamente perdida em lembranças de um passado que existia tão somente em sua imaginação. Enxerguei em seus olhos tristeza genuína e certa mágoa, mas ela disfarçou e sua voz continuou normal e um pouco indiferente (se eu não fosse tão observador, jamais teria percebido) a resposta demorou a vir, mas quando finalmente chegou pegou-me de surpresa, ao revelar uma faceta de vovô que eu até então desconhecia — ''seu avô me bateu com uma garrafa de vidro quando descobriu que eu havia chegado da escola acompanhada de um garoto. Naquela época uma moça não podia sair por aí andando com qualquer um'', Ela percebeu minha surpresa e continuou — ''Se eu pudesse, mudaria certas coisas para que jamais tivessem acontecido''. Hoje penso que, se naquela ocasião, mamãe tivesse tido cuidado de não chegar em casa acompanhada de um garoto para que meu avô os visse, teria evitado tomar uma surra e não carregaria por tantos anos essa triste lembrança. Seu pai seria somente amor se essa mágoa não existisse, porém, sei e entendo que ela não teria feito isso, pois não pensa no futuro. A garota que ela um dia foi, se tivesse uma visão do futuro (olhando para o lúdico, tentando ver a pessoa que ela um dia seria) veria tão somente uma mulher de meia-idade perdida em lembranças melancólicas de um passado longevo. O futuro é fragmentado, mas o passado é um espelho. E ela tem a capacidade de observar sua própria imagem, distorcida, mas fidedigna ao que um dia foi. Ao que é. Por isso, talvez, sua mente esteve sempre no presente (e também no passado), ao olhar para trás, mamãe olhava para si mesma.
Em certa ocasião, quando ousou olhar para o futuro, talvez um pouco mais longe do que deveria, ela enxergou o nada. A inexistência de si própria. E isso inconscientemente a assustou de tal forma que perdeu o habito de pensar no que aconteceria nos dias que se seguiriam. Tudo o que ela tinha era o passado. E olhava para ele indo cada vez mais longe, conforme os anos passam, a imagem se fragmenta, esticada e distorcida, mas seus sentimentos continuam vivos e ela sente todas as dores e alegrias como se tivesse acontecido no dia anterior. Memorias, tão vividas em sua mente, como se fossem observadas através de um telescópio, quando mais longe estiver, mais perto verá.
Desconfio, hoje, que, mesmo enxergando tão longe, ela jamais observou sua própria inexistência. Se tentasse ver a si própria no ventre de sua mãe, ainda assim iria enxergar uma faísca de consciência. Sangue. Pulsação. E se fosse um pouco mais longe, veria sua própria matéria transformando-se em pura energia e então teria a compreensão de que antes de vir ao mundo, sua alma sempre fora introspectiva e observadora. E sempre teve interesse tão somente no passado. Nunca no futuro.
Quando falo de mim, eu falo de mamãe, mas também falo do passado, tenho minhas dúvidas se estou vivo no presente. Se quer tenho certeza se aqui existo. Não sou meu corpo e meus pensamentos não me definem, penso e sinto, porém, isso não significa necessariamente que existo. Observo as coisas que acontecem através de uma cortina que faz uma separação entre matéria e pensamento, pensamento e consciência, consciência e ego, todas as coisas formam o que chamo de 'mim', mas sinto que a química em constante combustão está começando a queimar em enorme quantidade e mais do que dou conta, limpar os resquícios que sobram das cinzas é o que chamo de processo de autodescoberta, um processo duro e fragmentado, parafraseando em palavras conceitos abstratos que ninguém mais além de mim entenderia. O que vou descobrindo é um novo “eu”, uma nova versão de mim, que paradoxalmente transcende o próprio tempo, é nova, mas também é velha, houvera episódios em que a encontrei no futuro, em palavras, em sonhos, mas descobri que também tenho acesso ao que chamo de mim quando vou ao passado, então preciso voltar e ficar perdido em memórias. Chegará o momento que minhas memórias acabarão — quão longe posso ir? — mas ainda assim restarão memórias de mim quando meu corpo ainda não existia, meu ego, assim como eu, era somente um embrião sem consciência ativa. E tudo o que havia em mim era pura consciência ancestral. Como pude esquecê-la ao nascer? Talvez esse texto seja uma forma de dizer-lhe que me fez tanta falta. Mas compreendo e suponho que fosse essa a exigência que me permitiu vir a esse mundo (escrevo essas palavras com certo desgosto, confesso), pois em completa ignorância nasci e de mim exigiram sensatez quando só havia inconsequência, fiz muitas coisas que me arrependo amargamente, mas meu ego me diz que passei por todas essas situações para apender com meus erros e acho que é verdade, Mas hoje, em memória, volto ao passado, e constato que durante o presente, em agonia, jamais fui capaz de sentir orgulho de mim, muito pelo contrário, incansavelmente usei minha imaginação para fugir da realidade dura, aquela que enxergava com meus olhos de menino. Passei a fingir ser outra pessoa, com outra identidade e com certeza outra personalidade, não é que eu não gostasse de mim (até gosto), mas tinha tanta vergonha de ser quem eu era que fui criando uma imagem figurativa da pessoa que eu gostaria de ser; oras, e não é que eu sempre tive a enorme capacidade de usar minha imaginação a meu favor?
Hoje, acho que cresci, outras pessoas me enxergam como o homem adulto que teoricamente sou, mas essa não é a verdade (não totalmente), somente agora, já carregando alguns anos nas costas, que comecei a entender minha própria natureza. Comecei e dou graças a Deus por isso; mamãe com o dobro da minha idade jamais entendeu, claro que um dia ela entenderá (futuro), mas quanto mais cedo fosse, melhor seria. Minha natureza é a energia que me mantém vivo e respirando, quando olho para cima, vejo as estrelas, vejo essa mesma energia me encarando de volta, ela é sábia, pois carrega milhares de anos nas costas e vive em paz planando no universo. Me olha de cima, enquanto a enxergo aqui de baixo. Ela nasceu através de uma combustão espontânea de hidrogênio, a temperatura atinge milhares de graus e então uma fusão acontece liberando energia, é o que faz a estrela nascer e logo depois, brilhar; o oceano jamais nasceu, sempre esteve aqui. Antes da formação da terra, o oceano já era o verbo. E o verbo estava com Deus. Como poderia eu teorizar sobre a origem de algo que sempre esteve aqui?
Nem me atrevo.
Assim como as águas, que já existiam antes da vida existir, penso que eu estava aqui antes de me ter por completo em corpo e mente. Mas em algum momento houve combustão, uma fusão de algo com algo, liberando calor e energia, e então eu estava vivo. Não consciente, mas vivo. Respirar não me é suficiente, apesar de me bastar durante meus primeiros anos de vida (lamentavelmente continua bastando para a maioria das pessoas durante toda a vida), mas agora quero mais, tenho infinita sede que nem mesmo o próprio oceano poderia saciar, quero enxergar além do que posso. E acho que consigo. Mas o brilho das estrelas não é suficiente para me dar essa luz. Busco respostas e acho que um dia as terei, mas tenho pressa e minhas costas doem. Pequeno como sou, há muito penso o porquê das pessoas serem tão hostis umas com as outras quase o tempo todo. Acredito que a maioria não saiba lidar com o fato de ter nascido. Viemos a esse mundo chorando de dor e desespero, e só paramos de chorar por que ficamos cansados, mas o pranto continua e vai além do que imaginamos. Se tudo é energia, viemos todos do mesmo lugar. Falo por todos quando digo que queremos voltar para casa.
A lembrança mais remota que tenho de mim, que de tão remota acaba caindo no âmbito da imaginação, é de quando, em minha temporária neutralidade humana (suponho que fosse inocência) adormecia no útero de mamãe, que foi para mim meu berço primário, formou-se o corpo através da fusão de algo com algo, mas isso é ciência. Falando do espírito, o verbo já existia no princípio de tudo. E o princípio não é meu corpo, pois minha carne é somente a biologia que existia em papai e mamãe fundidas em uma coisa só. Mas existe o antes tanto quanto existe o agora. Vejo energia em alta temperatura, vejo combustão de uma consciência milenar. Não é um lugar físico, mas é para lá que quero voltar, a confusão deu-se, pois biologicamente só consigo andar na direção do futuro, não consigo voltar para o lugar que chamo de casa, só me é possível visitá-lo em pensamento. Mas isso não é problema, pois o pensamento também é uma fusão de algo com algo. É um processo difícil, pois o ego atrapalha a consciência e o corpo deseja prazer e não introspecção. Preciso matá-los, para que eu possa ver o nascimento da estrela e o oceano que já existia antes da vida existir.
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