Deixo aqui meu lamento, e minha sincera nota de esclarecimento em relação a meu irmão. Que foi um bom homem. Trabalhou a vida inteira e viveu tranquilamente, ao meu lado, em nossa casinha, que nós herdamos de nosso falecido pai; foi o único bem que ele nos deixou, cuidamos dele com amor e carinho, para honrar a memória de nosso provedor, a quem muito nos amou".
(...)
"No momento que Damião estava tendo seu fatídico infarto, eu estava tranquilo em meu jardim, cuidando das minhas flores.
Súbito, ele soltou um grito alto e doloroso, como se estivesse em desespero, tentando entender o que estava acontecendo com seu coração, que doía amargamente; sua voz produziu um barulho terrível, algo que jamais esquecerei. Quando corri para socorrê-lo, algo em meu coração me dizia que já era tarde demais. Tenho certeza de que foi a suplica de Damião, aquilo tocou na minha alma e a apunhalou.
Naquele momento eu soube que havia perdido meu amado irmão caçula".
(...)
"Cuidei de seu corpo com muito cuidado e carinho, pois o respeito que eu tinha por Damião continuava tão vivo quanto eu, ainda que machucado e tristonho. Retirei os trapos que ele estava usando e o vesti com sua melhor roupa; também limpei sua pele pálida com um pano molhado, penteei seus cabelos ralos e limpei atrás de suas orelhas e pescoço. Não achei que fosse necessário, mas ainda assim quis fazê-lo, pois pensei que meu irmão merecia receber o melhor culto fúnebre que eu poderia lhe oferecer, ainda que simplório e não muito popular; a recepção seria tão somente simbólica, de corpo presente estaria somente ele e eu.
Naquele dia, preparei minha melhor roupa e retirei algumas cervejas que estavam guardadas em minha geladeira. Me lembro de pensar que aquilo não era a melhor opção para ser servida na ocasião, mas, decerto, Damião não iria incomodar-se, cerveja era sua bebida favorita".
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"A cova estava localizada bem nos fundos de nosso quintal, onde ali havia um enorme emaranhado de belas ervas e flores-do-campo, de todos os tipos, todas plantadas por mim. E no centro havia um espaço limpo e arenoso, com um buraco relativamente grande no centro, seria essa a nova cama mortuária de Damião. Ele descansaria em paz, e claro, receberia seu merecido destaque em nossas terras.
Não era tão fundo, pois não achei apropriado, enquanto a estava cavando pensei na possibilidade de sufocá-lo quando fosse tapar o buraco com a terra. Pensamento ridículo, mas que naquele momento pareceu-me fazer muito sentido; de um jeito mórbido e até assustador. Acho que ainda não havia aceitado que meu irmão foi-se para nunca mais e que sua vida tinha sido usurpada pela morte.
Ele nada mais podia sentir, nem mesmo o sufocamento de seu próprio martírio.
Eu estava desorientado e um tanto confuso. Quando peguei o corpo de meu irmão e o depositei em sua cova, outro pensamento maluco me veio a cabeça – esse foi ainda mais ridículo – lembrei-me de todas às vezes em que plantei uma semente e a fiz germinar, fazendo exatamente a mesma coisa; cavando um buraco na terra e a enterrando. As raízes iriam desenvolver-se e dessa semente brotaria algo novo, que cresceria e logo daria frutos. Algo vivo e pulsante. A própria fonte da vida. A origem da natureza.
O corpo de meu irmão muito assemelhava-se a uma suposta semente, pois estava sendo colocado em um buraco e depois seria todo coberto pela terra. Eu perguntei-me, será que algo iria brotar de sua cova?
Nesse momento balancei minha cabeça em negativa. Era ridículo, e essa era a hora mais imprópria possível para se ter esses devaneios inconvenientes em relação a meu falecido irmão – como pude pensar numa coisas dessas?
Suspirando fundo e tentando aquietar minha imaginação fértil, comecei a juntar a terra com uma pá e a jogar em sua cova.
– Jazereis em paz pela eternidade. Amém".
(...)
"Quando terminei de enterrá-lo, instintivamente, peguei uma de minhas cervejas e a tomei quase até a metade, num só gole. E, ao sentir o gosto amargo do álcool descendo pela minha garganta, fiquei deveras deprimido. Pela primeira vez percebi que agora estava totalmente sozinho e que minha vida seria muito mais solitária dali para frente. Meu irmão, meu parceiro, jamais iria dividir outra cerveja comigo no finalzinho de tarde.
Sentindo enorme tristeza e solidão, despejei o restante da bebida na terra que agora seria a nova cama mortuária de meu caçula. Ela estava relativamente seca, e a cerveja foi simplesmente engolida pelo solo, produzindo um pouco de espuma e fumaça. O líquido amarelo foi ao poucos sendo sugado até que desapareceu por completo.
– Estou regando sua semente, Damião. Espero que um dia eu volte a vê-lo, em algum lugar, na eternidade, e quem sabe lá poderemos dividir outra cerveja.
Chorei. Chorei muito. E fiquei parado naquele local durante um longo período, em silêncio, aproveitando a brisa refrescante do fim de tarde".
O diário de Camilo passou a ter anotações confusas e ainda mais esporádicas. Sem datação ou horário marcado. Não há indícios da veracidade dessa história. Compreendam que este documento foi escrito por uma pessoa perturbada pelo luto, que provavelmente estava sofrendo de alguma avaria mental; de modo que, relevem a loucura desse pobre infeliz.
"Meses se passaram desde a morte de meu irmão. É com pesar que digo que não aproveitei o luto como deveria.
Houve noites mal dormidas, longas e agoniantes. Que não passavam nunca, e que só agravaram minha solidão. Meu sono, ainda que pouco, era sempre perturbado por muitos pesadelos, terríveis e mórbidos. Não tive paz nem por um minuto e acho que jamais a terei novamente".
(...)
"Mesmo perturbado, busquei visitar meu irmão regularmente, para cuidar das flores que estavam a sua volta e também manter a terra úmida e limpa de folhas e outras sujeiras. Isso para que o local se mantivesse íntegro enquanto eu viver; e foi numa dessas minhas visitas que percebi algo peculiar e um tanto estranho crescendo naquele local.
Uma mudinha, ainda pequena, com duas folhas verdes limão desenvolvendo-se, e com terra seca espalhada em seu caule. Ela havia brotado a não muito tempo e estava localizada exatamente onde enterrei o corpo; onde não havia vegetação, somente a terra úmida que o cobria.
Achei estranho, me questionei, perguntei-me de qual semente aquele broto havia se desenvolvido. E me lembrei que a alguns meses, no dia em que fiz o enterro, tive alguns devaneios em relação a meu irmão, como se seu cadáver fosse uma semente prestes a criar raízes.
E agora ela estava ali, apenas uma plantinha inofensiva, crescendo e proliferando. Engraçado, não?".
(...)
"Mais pesadelos, vejo imagens confusas e difusas, raízes que saem do solo e se arrastam na direção de minha casa para agarrar meus pés e puxar-me para debaixo da terra (para a cova de Damião). Sinto cheiro de putrefação, um odor que exala do solo, é soprado na minha direção e vem a meu encontro; e aquela plantinha, já não era mais uma simples muda, agora ela cresceu e se tornou um emaranhado de raízes vermelhas, vivas, prontas para agarrar-me pelo tronco e me esmagar até que eu perca o fôlego.
Me esmagar até a morte.
Isso eu vejo em meus pesadelos, e quando acordo na manhã seguinte, olho para meu jardim, e percebo que aquela plantinha está ainda maior, crescendo um pouco mais, a cada dia.
Estava me assustando. Era um medo irracional, mas que deveras me perturbava. Eu poderia tê-la matado, para acabar de uma vez por todas com essa história. Simplesmente arrancando ela da terra com meus punhos. Mas não o fiz, isso porque sempre imaginava que ela era um fruto do corpo de Damião. Uma manifestação de sua semente, e foi tão somente esse meu delírio que me impedia de acabar de vez com aquela plantinha.
Que já não era mais uma simples muda, após quatro semanas ela cresceu muito, e agora tinha um tamanho considerável, e crescia mais a cada dia.
O que poderia significar isso? Será que estou maluco?
Estaria eu sendo castigado por Deus?
Não conseguirei descansar após a morte de meu irmão, por que ele próprio não descansou?
Acreditei naquele momento que tudo não passava de um delírio da minha cabeça, mas hoje sei que não; aquele maldito broto era fruto de um defunto, uma aberração que criou raízes em meu jardim e que invadiu minhas terras para atormentar-me".
E então, os últimos fragmentos dessa história, os que ficaram de fora são aqueles que estavam incompletos ou ilegíveis. Todos foram identificados como sendo parte do diário de Camilo, e há indícios de que diversas outras partes foram perdidas com o tempo. Infelizmente jamais saberemos o que, de fato, foi relatado naquelas outras páginas.
"Passaram-se alguns anos, ela cresceu e se tornou uma enorme árvore. Cheia de folhas verdes e grossas raízes que brotavam de seu enorme tronco marrom, que muito se pareciam com tentáculos de um enorme polvo. Haviam linhas de expressão em todo seu comprimento, em alguns locais eu podia jurar poder enxergar o semblante característico de Damião nessas linhas, mas ao piscar duas vezes, o semblante mudava, ainda humano, mas não mais semelhante ao de Damião.
Sua folhagem, por mais que eu odeie admitir, era exuberante, de fato muito bonita. Tentei identificar sua espécie através de suas folhas, em livros de botânica, mas nada encontrei; é como se essa misteriosa árvore jamais tivesse sido identificada por outro ser humano.
Eu sabia, claro que sabia, ela nasceu do corpo de meu irmão. Que de alguma maneira criou raízes e se fez brotar. Eu podia imaginar com muita clareza aquele defunto, debaixo da terra, em eterna podridão, mas que estava coberto por muitas raízes que se formaram em suas costas e firmaram na terra. E o enorme tronco marrom que crescia de sua barriga e ultrapassava os limites desse solo arenoso. Dando resultado a esse mórbido e belo enigma.
Ainda que assustado, fiquei também maravilhado e um tanto orgulhoso, pois, se no jardim do Éder, paraíso de Deus, havia nascido a árvore-da-vida, em meu jardim germinou a árvore-da-morte".
(...)
"Ela está dando frutos, oh meu Deus, que coisa hedionda, pavorosa... Mal posso olhar para eles. Eles possuem uma coloração estranha, marrom escuro, avermelhado, muito semelhante ao sangue quando já está em avançado estado de decomposição. Seu formato é longo e oval, e sua crosta é firme, porém macia. E em seu comprimento tinham espinhos amarelos e pontiagudos. Completamente traiçoeiros.
Certa feita, aproximei-me dela e tentei agarrar um de seus frutos, por mera curiosidade, queria vê-los mais de perto. Mas fui surpreendido pelos espinhos e furei minha mão em diversas partes, sangrou bastante, e agora não tenho mais sensibilidade nessa região, deve ser algum tipo de efeito colateral. Dias após, eu estava sentindo uma coceira latente e incomoda, que quase estava me deixando louco. Ao olhar com mais atenção, eu podia jurar que vi pequeninas raízes brotando de meus dedos, como se fossem pelos, mas de coloração marrom-claro. Era semelhante a pernas de aranha.
Desde então, jamais peguei outro daqueles frutos. Mas fico imaginando que gosto aquilo teria, e, certamente, não seria nada agradável comê-los como se fossem maçãs, pois se apenas seus espinhos fizeram aquela monstruosidade com minha mão, o que sua polpa não teria feito com meu estômago?
Seria esse uma espécie mais alternativa do fruto proibido?".
(...)
"O homem desobedeceu a Deus e comeu daquele fruto. Por causa disso foi expulso do paraíso, ao lado de sua esposa, Eva, a responsável por fazê-lo cometer o primeiro pecado.
Minha loucura é a minha Eva, e penso que mais cedo ou mais tarde serei sucumbido por ela.
Estou sendo impelido por uma estranha curiosidade mórbida, que está me consumindo aos poucos, e sei que é só uma questão de tempo para provar desse fruto, só está me faltando a coragem. Porém, sabendo que este é o fruto de meu irmão, estarei eu cometendo uma espécie de canibalismo? Serei castigado por isso?
Mas, ora bolas, se este é um fruto se sua árvore, foi feito pela natureza para que o comessem, não?
E se existir um castigo para isso, que seja minha própria morte, pois dessa forma finalmente terei paz.
– Dedico essa mordida a você, Damião".
"Croc".
(...)
"Há raízes brotando de meus pés, minha mão é de uma rigidez dolorosa e agonizante, está quebradiça, como se fosse madeira velha. Escrevo isso sentido um enorme dor e agonia, mas quero deixar essa carta a quem interessar possa; aconteceu-me algo fantástico desde a morte de meu irmão e gostaria de deixar isso registrado. Ainda que não acreditem na minha história.
Porém, é bem fácil de comprovar a veracidade desses registros, olhem em meu jardim e contemplem a enorme árvore-da-morte que um dia fora Damião, meu amado e falecido irmão caçula.
Sinto que morrerei em breve, aquele fruto certamente envenenou-me e agora sofrerei em agonia, até encontrar a paz.
Hoje encontrei uma pequena folha brotando em meu peito. A arranquei depressa, sentindo uma enorme pontada de dor, mas ainda assim sentindo certa satisfação. Porém, sei que não poderei arrancar todas as folhas que forem nascem.
Estou virando árvore, talhe qual meu irmão. Porém ainda estou vivo e certamente serei uma espécie diferente da que foi meu irmão. Damião é uma árvore nascida da morte; sou uma árvore gerada ainda em vida.
Me pergunto, qual será o sabor do meu fruto?".
🪵
Feliz Halloween pessoal! 🎃
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