Com a palavra, o louco - conto

Tang
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1) Era uma noite chuvosa e soturna, como tantas outras naquela mesma semana. Estavam sendo dias monótonos para mim, vivia sempre em meu trabalho e apenas visitava minha casa por algumas horas, para comer, dormir e fazer minha higiene básica. 

Nada novo, tudo de novo. Mas não me incomodo com essa minha rotina, pois assim consigo me sustentar e pagar minhas contas. Apesar de frustrante, a vida era para ser vivida.

2) Há tanto tempo tenho o costume de pegar a mesma condução, e vejo normalmente as mesmas pessoas no ponto de ônibus, vivendo da mesma maneira medíocre talhe qual a mim. Do ônibus para casa, e de casa nós voltamos para o mesmo lugar.

Engraçado que essas pessoas passaram a fazer parte da minha vida, até sinto que alguns deles, agora, fazem parte da minha família. Pois os vejo muito mais que alguns familiares meus. Minha santa mãezinha ainda mora em sua casa no interior de São Paulo, não a vejo pessoalmente há uns oito meses. Já a senhora de coque que adora usar brincos enormes e carregar debaixo do braço uma enorme bolsa de tricô, a vejo todos os dias.

Tem o senhor careca e magrelo que costuma sentar-se no último assento do ponto de ônibus. E todos os dias compra um pequeno copo de café na banquinha de salgados que fica na primeira esquina. Ele o toma enquanto observa o trânsito, atônito e concentrado. O que será que passa por sua cabeça nesse momento?

E para onde ele está indo?

Vejo também um cachorro caramelo e magricela passando pelo ladrilho da calçada. Procurando por comida e abrigo. Ele passa todos os dias por aquela rua. E todos os dias eu sinto pena do pobre infeliz. Mas nunca fiz nada para ajudá-lo, assim como todas as outras pessoas que costumam frequentar aquele lugar, apenas o ignoro e tento tirá-lo da minha cabeça, para não me sentir tão mal por não poder fazer nada por ele.

Amanhã sei que verei ele novamente, e sei que sentirei as mesmas coisas. E sei que não farei nada para ajudá-lo. Foi assim no dia anterior e será assim na próxima semana.

A vida é uma piada de mal gosto, para ele e para mim.

3) Outra figurinha carimbada vinha caminhando pela avenida principal como um louco. Era um morador de rua relativamente jovem, apesar de ter uma aparência lamentável de um moribundo. Tinha cabelos pretos e era magro igual um pau de virar tripa, sujo e fedido. Como qualquer outro viciado, as pessoas o ignoram quando ele passa, e ficam torcendo para que ele não fale com elas, e nem mesmo olhe para elas. Pois elas só querem seguir seu caminho em paz, sem interrupções inconvenientes. 

E eu certamente era uma dessas pessoas. 

Mas esse louco era diferente, não apenas um pobre vagabundo como tantos outros. Era fanático religioso e sempre carregava consigo uma bíblia surrada nas mãos, pequenina e toda suja. E certamente faltando muitas páginas que deviam ter caído do miolo e se perdido por ai

Ele parava as pessoas nas ruas para fazer perguntas, passar sermão e lições de moral, sobre arrependimento e salvação. "Peça perdão por seus pecados" ele dizia "arrepender-se é o único caminho para a salvação".

— Vá para o inferno seu bêbado — disse uma mulher loira e bem vestida que só estava tentando chegar em casa em segurança, mas que havia sido abordada por esse viciado e bêbado. Certamente poderia tentar roubar sua bolsa, se assim estivesse com vontade — me deixe passar!

Ela segurou a bolsa com as duas mãos e de cabeça baixa passou diretamente pelo louco sem nem olhar em seu rosto. Andando muito rápido, quase correndo. Ela achou que se tratava de uma espécie de assalto. Claro.

O louco a encarou por um tempo. Observando-a ir embora. E de maneira incoerente, proferiu

— Ainda que hoje tu chegues a seu destino, dona, o dia do juízo se aproxima e sua alma está cinza como o asfalto. Você não chegará a tempo. Ande pelo lado oposto e pegue uma rota alternativa, assim terá mais tempo para redenção. Esse será seu único aviso.

A mulher o ignorou. Certamente morrendo de medo. E continuou caminhando de pressa, indo para algum lugar. 

4) O louco virou-se noutra direção, esquecendo-se da mulher loira que agora estava dobrando a esquina, e continuou caminhando na direção do ponto de ônibus, como faz todos os dias.

5) Ele nunca falara comigo. Eu sempre coloco meus fones de ouvido para evitar contato visual e social com o dito vagabundo. E a tática sempre funcionou, até então. Mas hoje seria diferente. 

Todos no ponto de ônibus fecharam a cara. Semblantes raivosos e cansados de uma gente infeliz que só queria chegar em paz em suas casas. Eram 22:20 da noite, estava chovendo um pouco e fazendo frio. E os ônibus estavam todos atrasados. O louco aproximou-se de onde nós estávamos e ficou parado ali por um tempo. Não falou com ninguém. Todos ali eram figurinhas carimbadas e já conheciam seu repertório incoerente. Falar com eles seria o mesmo que pedir para levar um coice de um cavalo bem no estômago. E o louco sabia muito bem disso.

Talvez não seja tão louco assim.

Ficou imóvel feito uma estátua, do jeito que alguns bêbados ficam quando esquecem que ainda estão no mundo. Estava bem na minha frente e eu evitei ao máximo olhar para ele, para evitar contato visual. Ele poderia entender isso como um convite para me encher a paciência com suas besteiras. E como não passou nenhum pedestre, ele não pôde fazer seu showzinho de religiosidade fanático diário com mais ninguém.

Após algum tempo, parece que ele se cansou. A pose do "bêbado maluco" mudou de repente e ele não parecia mais um louco, e sim um rapaz comum. Sujo, mas comum. Virou-se na direção do banco e sentou-se bem a meu lado. Com as mãos no bolso e os olhos cansados. Parecia decepcionado. 

Por um segundo bem rápido, ele percebeu que eu o observava, e trocamos olhares espantados. Eu me odiei naquele momento, pois trocar olhares com esse tipo de gente é praticamente um convite para que eles falem conosco. Caralho.

— Ei, cara — Ele me falou, olhando para mim, seus olhos eram escuros como a noite. Dava medo encará-los por muito tempo — Que horas exatamente são agora?

"Que maneira esquisita de perguntar as horas. O cérebro já virou mingau há muito tempo" eu pensei. Olhei para o relógio e constatei que eram 22:22. E disse a ele.

— Puxaaa — ele falou. Parecendo um adolescente — Eu estava esperando a senhora de cabelos grisalhos passar por aqui. Ele tinha que ter passado há dois minutos. E não passou. A hora dela é agora. Tanto que avisei. Tantou que eu pedi. Ela não me escutou.

"Mas que porra esse cara está falando?"

Ele percebeu que eu não estava entendendo nada. E deu um sorriso sarcástico e sacana que me fez perceber uma coisa muito interessante sobre o desgraçado. Ele não é louco porra nenhuma. Apenas se faz.

— Ela morreu — ele disse — Morreu hoje. Ontem. Pode ser amanhã. O tempo eu não sei. Mas ela morreu. Isso eu digo com certeza. 

— Como sabe? — eu perguntei quase que para mim mesmo. E falei quase tão baixo que nem eu mesmo me escutei. Mas ele escutou.

— Todos vamos morrer, ora. Essa é a única certeza que tempo em vida. Mas eu a alertei sobre isso tantas vezes. Todas às vezes que a vi passar por aqui. Eu disse para ela pegar um rota alternativa e tentar a faixa de pedestres, em vez de atravessar a rua a revelia. Mas ela não escutou. E pagou o preço. 

"Esse cara não bate bem" eu pensei, mesmo que há poucos segundos eu tenha chegado a conclusão de que ele não era louco, coisa nenhuma. 

— Você não está entendendo nada, eu sei — disse ele, novamente com o sorriso sacana no rosto — e sei que não quer que eu fale contigo, pois sempre me olha quando eu não estou olhando para você, mas vira o rosto quando estou por perto. Pois acha que assim eu não falarei contigo. 

Eu nada falei. Ele acertou na mosca. Era um rapaz inteligente. 

— Todas as pessoas fazem isso. Eu acho. Mas eu não ligo. Apenas faço meu trabalho e espero que pelo menos uma delas me dê ouvidos, antes que seja tarde. Faço isso a anos, e nunca tive bons resultados. Talvez agora seja diferente. 

— Como assim?

— Eu preciso falar contigo. Dessa vez. Será a primeira e única vez.

"Merda"

— Não se preocupe, será um recado breve.

Suspirei bem fundo. Lá vinha mais um monte daquele merda religiosa e dessa vez o balaio era comigo. Eu caí em sua armadilha como um patinho e agora eu tinha que ouvi-lo falar. 

Lentamente ele levou as mãos até o bolso de trás da calça jeans e tirou um bloco de notas surrado, nele havia muitas coisas escritas, e alguns desenhos também. Eu avistei algumas nuvens, pássaros e também alguns anjos. Mas não eram desenhos bons, pareciam ter sido feitos por uma criança de dez anos.

— Me diga seu nome, por favor — Ele falou sistematicamente, parecendo um homem de negócios. 

Eu hesitei. Mas falei. Queria ver onde aquilo iria dar

— Levy

— Com quatro letras se escreve Levy. O nome que ao contrário soa como "evil", uma palavra não muito boa — Ele disse, sendo incoerente — Mas somos falantes de português, então isso não importa muito.

— É...

Eu não entendi porra nenhuma e ele percebeu. Pois o sorriso sacana formou-se em seus lábios. Ele percebia quando as pessoas não o entendiam e tirava sarro disso. Que filho da puta engenhoso. 

Folheando o bloco de notas, ele procurava por alguma anotação que havia feito a meu respeito, supunha eu. E para achá-la, ele precisou saber do meu nome. Levy. Mas não havia separação nenhuma de letras ou datas no bloco, apenas anotações aleatórias e incoerentes. Eu não sabia o que ele estava procurando. E nem para quê, a essa altura eu só queria que meu ônibus chegasse logo para acabar com essa loucura. 

— Achei! Puxa, isso estava perdido por aqui. Escrevi há muito tempo. 

— O que é?

— É uma mensagem. De Cristo Jesus para você. Quer ouvi-la?

— Pode falar. Mas tem de ser rápido. Meu ônibus chegará a qualquer momento. 

— Serei breve. Prometo.

O louco, então, começou a recitar aquelas palavras com a voz de um locutor. Eloquente e uma dicção impecável. Ele sabia transitar facilmente entre o absurdo de um vagabundo e a inteligência de um intelectual. Talvez, porque já tenha sido as duas coisas nessa vida.

— "Conheço os teus caminhos e sei de sua trajetória. Estou contigo em todos os momentos, por mais que não me veja ou não sinta a minha presença. Todos os dias você passa por essa rua e todos os dias sinto pena de ti, pobre infeliz. A caminho de seu trabalho, pois só assim terá casa e comida."

— Você disse que seria breve. Isso está longo pra um cacete!

— Não me interrompa mais. Será seu último aviso!

Nada falei. Apenas esperei pacientemente que ele terminasse com aquela prosa. 

— "… Mas não posso interferir em seu livre arbítrio, nem mudar os rumos de sua vida medíocre. Por mais que tu estejas cansado dela. A decisão de mudá-la é sua e apenas sua. Tu eres um rapaz pálido e magricela. Às vezes, mal posso olhar para você, viro-me noutra direção, pois me sinto mal por não poder fazer nada para ajudá-lo. Mas existe uma solução e uma resposta. Basta que você a descubra." — O louco parou de falar e encarou-me, com olhos penetrantes — acabou.

— Mas que porra é essa, cara — disse-lhe, impaciente — Isso nem de longe parece algo que Jesus diria a alguém. E nem de longe parece ser um recado direcionado a mim. Minha vida não é tão medíocre quanto possa ser; eu trabalho e tenho a minha casa. E você é só um vagabundo. 

— Mas eu sei de onde vim e para onde vou. Sei o que estou fazendo aqui e o que farei em seguida, quando não estiver mais aqui. E você, sabe?

— O que eu sei é que já estou cansado dessa merda. Você me encheu a paciência, cara.

— Eu sei. Acabo com a paciência de todo mundo.

Nesse momento meu ônibus virou a esquina. Estava chegando, finalmente. 

Preparei-me para embarcar. E o louco percebeu. Parecia decepcionado e cansado. Eu era só mais um, daqueles que não entenderam seu recado.

Ele olhou para mim. Olhou para o cachorro caramelo que estava roendo um osso de frango na calçada, e olhou novamente para mim. E numa última tentativa de fazer-me entender seu recado, ele disse, apontando na direção do vira-lata.

— Você é como ele. E Jesus é como você. Pois todos os dias você cruza o caminho desse pobre infeliz, mas nada pode fazer para ajudá-lo. E vira o rosto em outra direção, pois não quer viver com essa culpa. Sente pena, mas está de mãos atadas. 

Eu o encarei. Já estava com o pé na plataforma do ônibus, prestes a embarcar. 

— Você é como aquele cachorro vira-lata. Não sabe de onde veio e nem para onde vai. Se queres saber qual será seu destino, apenas tente imaginar o que acontecerá com esse pobre bichano nas próximas semanas se continuar vivendo dessa forma, perdido e largado nas ruas, e tire suas próprias conclusões.

O louco saiu caminhando, novamente andando como um bêbado. E prestes abordar o primeiro infeliz que cruzasse seu caminho. 

Quanto a mim, embarquei no ônibus prestes a seguir viagem a caminho da minha casa. E amanhã farei exatamente a mesma coisa, pois sou como aquele cachorro, não sei de onde vim e nem para onde vou. 

Talvez seja o momento de pegar uma rota alternativa.

6) Antes de entrar o último passageiro, passei diretamente pela catraca e saí do ônibus pela porta de trás. Algo em mim estava me dizendo para fazer isso. E eu decidi escutar essa voz. 

Do lado de fora, senti a garoa fria em meu rosto, respirei fundo e uma rajada forte de vento gelado veio na minha direção. E me acertou em cheio. Me senti vivo, como há muito tempo não acontecia. 

Hoje irei caminhando para casa. Peguei uma rota alternativa. Como um louco, acredito que isso poderá mudar meu destino, de alguma maneira. 

Sinta-se orgulhoso, garoto louco e fanático religioso, alguém entendeu seu recado. 

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