Agua viva — adentrando na mente alucinante de Clarice Lispector

Tang
By -
0

Romance de Clarice Lispector, publicado no ano de 1973''Água Viva'' é considerado um dos mais experimentais da autora, não é um texto convencional que costumeiramente vemos na literatura do Brasil e do mundo, este trabalho demonstra uma enorme complexidade narrativa já que apresenta um fluxo de consciência ininterrupto de uma artista plástica na direção de um interlocutor não identificado. Trata-se de uma meditação sobre o tempo, a criação, as palavras e o existencialismo de modo geral. A personagem vai buscando dentro de si a mensagem que deseja transmitir através dessa oração, embora nem ela própria saiba identificar o que está tentando falar, onde está querendo chegar com tudo isso. E o texto vai escalonando na medida que os devaneios filosóficos da moça vão ficando cada vez mais introspectivos e abstratos.

A escrita da autora, embora hermética, quase biográfica, é fluida e o leitor poderá finalizar esse livro no mesmo dia se ele assim o quiser. Mas existe certo receio de encarar esse texto por ser considerado de difícil compreensão. A obra reflete uma busca incessante de compreender aquilo que é indizível, supostamente incompreensível, impossível talvez de descrever em palavras — e aqui existe um impasse, ao ser em palavras que a autora tentará encontrar essa resposta que tanto está buscando, mas ela não é escritora, é artista plástica, e após ser incapaz de acessar esse conhecimento sem forma e cor através de seus quadros, optou por escrever uma carta de destinatário misterioso na tentativa de alcançar aquilo que até então, foi inalcançável. O interessante é que autora e pintora se fundem em Água Viva. Ela vai tentando capturar o ''Instante-já'' que é basicamente a essência do presente, o momento em que está viva e consciente de si enquanto vai escrevendo seus devaneios, o cenário se forma como se ela estivesse pintando em palavras, é algo abstrato, portanto, não há exatamente uma coerência interna. O título da obra refere-se ao formato diferenciado do texto, onde temos acesso aos pensamentos livres de uma moça; ele corre como a água, é transparente, pois aqui não há segredos e se você tentar segurá-lo com as mãos, escorrerá por entre seus dedos. Fluxo de água corrente é semelhante ao fluxo de consciência.

É um texto que exige uma dedicação fora do normal do leitor. Clarice disse certa vez que seu texto era como ''um grito'', uma tentativa desesperada de comunicar algo que transcende a linguagem em formato não linear. Ao constatar que seu trabalho enquanto autora funciona mais para quem conseguir 'sentir' ao entrar em contato do que para quem busca entender racionalmente o significado interno de suas palavras, ela abre margem para que toda sua obra seja apreciada por quem busca prosas que desafiam narrativas tradicionais e apresentam ao leitor mais densidade poética e filosófica.


Entrando em contato com o divino através de introspecção profunda:

Um tema recorrente na obra de Clarice é a forma que ela vai flertando com a ideia da morte de uma maneira quase romântica e sexual. Pois há uma crença interna de que é mediante a morte do corpo que o espirito em seu estado mais bruto se manifesta e traz de volta o inconsciente que outrora havia estado adormecido, isso é o que chamamos de epifania, esse episódio foi descrito em ''A Hora da Estrela'' — confira nossa resenha; https://recreiobr.blogspot.com/2025/05/a-hora-da-estrela-resenha.html — mas não existe senso prático nisso, uma vez que não sabemos o que há depois da morte, só haveria utilidade em despertar a consciência adormecida enquanto ainda estamos vivos. Embora não exista uma fórmula exata para fazê-lo, há quem diga que a melhor maneira seja através de introspecção, pois assim você estará entrando em contato com a centelha divina que existe dentro de você e estará consciente para utilizar desse conhecimento de maneira prática. É isso que Clarice estava tentando fazer em Água Viva.  


Acredito que ela tinha certo conhecimento em relação a própria existência e em palavras tentou transmitir isso a quem fosse capaz de compreender. É dentro de si mesma que Clarice encontra aquilo que chamamos de ''Deus'', mas como ela não sabe seu verdadeiro nome o nomeia da forma que achou mais conveniente, no texto seu nome aparece com sendo ''IT' — uma coisa, um isto ou aquilo — que é a centelha divina que lhe compreende o folego de vida dia após dia. Se dentro de si ela tem o poder de encontrar Deus, logicamente podemos concluir que ela é criatura, mas também é o criador. Em sua literatura pude perceber que ela foi alternando entre essas duas condições ao narrar suas histórias — Em A Hora da Estrela ela foi o criador — em Água Viva ela está sendo criatura tentando entrar em contato com o criador. 


Morrer para Clarice é a condição de quem epífana o cosmos, pois toda sua existência voltará para seu lugar de origem. Para de onde viemos, voltaremos. Mas ela está tentando fazer isso enquanto continua viva, portanto, aqui percebemos um empasse filosófico existencial — ''Tenho uma coisa para te dizer: É que não estou brincando: IT é elemento puro. É material do instante tempo. Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do IT. Sinto-me tonta como quem vai nascer.'' — Esse é um dos muitos trechos em que Clarice se coloca numa posição dupla existencial, ela tanto é o criador (a mãe a quem dá à luz a seu filhote) quanto a criatura (O ''IT' que está prestes a nascer), o que acontece é que houve separação dessas duas entidades ao vir ao mundo, mesmo em criança quando não há consciência, não somos capazes de nos lembrarmos de onde foi que saímos antes de vir a esse mundo. A matéria de Clarice, como também seus pensamentos mais simples, estão no que ela própria chama de ''instante-já'', ou seja, o presente. Mas sua inconsciência — aquilo que existe atrás do pensamento que os despertos chamam de ''observador'' ou ''eu-superior'' — transcende essa dimensão feita puramente de matéria orgânica e que acreditamos ser o mundo real. 

Esse livro consiste no fluxo de pensamentos de uma mente que se fragmentou e se perdeu de sua forma original. Clarice está tentando recordar-se daquilo que foi esquecido. Há o pensamento simples e prosaico, aquele responsável por manter dentro da normalidade coisas do dia a dia. E há um conhecimento muito mais profundo e ancestral que muito está próximo do que religiosamente chamamos de Deus.

Não posso afirmar que ela de fato consegue atingir o resultado esperado, não há uma cronologia exata e nem tem o que podemos chamar de ponto final que seria o ato conclusivo da obra. Após atingir o êxtase reflexivo de sua meditação, a autora vai discorrendo esses elementos em reflexões elaboradas no que tange seu encontro com Deus, mas também sua perspectiva do mundo real: uma flor que observa no jardim, uma africana que teve filho pardo com homem branco, uma gata que devora sua própria placenta após dar à luz. Tudo que há no mundo é ''IT'', tudo é Deus e tudo é Clarice. É uma visão que flerta bastante com o politeísmo, não chega a ser de fato, mas é algo que contraria o monoteísmo, por exemplo, uma vez que aqui a autora insinua que somos todos deuses, ou, que somos todos criaturas que podem acessar algo divino dentro de nós mesmos, podendo ser o mesmo Deus ou não.


Observação: Alguns dos ensaios inéditos incluídos na edição especial em capa dura publicada pela Editora Rocco oferecem uma análise profunda e multifacetada do livro. Oferecendo uma visão mais ampla ao leitor, auxiliando-o a obter um melhor entendimento da obra.

◦ ''O conselho do amigo — Carta à Clarice'' escrito por José Américo Motta: Discussão sobre a natureza autobiográfica do primeiro manuscrito escrito por Clarice e que foi enviado a seu amigo pessoal José Américo para análise critica e literária. Após Lê-lo, constatou que talvez não fosse uma boa ideia publicá-lo da forma como estava, pois Clarice teria muito de sua vida pessoal revelada ao público através daqueles escritos. 

 ''As duas versões de Água-Viva'' escrito por Alexandrino Severino: Clarice havia escrito um manuscrito com cerca de 180 páginas chamado ''Objeto Gritante'' que viria a se tornar ''Aguá-Viva'' após um longo processo de edição e releitura, muita coisa foi cortada e reescrita. O resultado foi um manuscrito com cerca de 88 páginas, as mudanças foram feitas na intenção de deixá-lo menos autobiográfico.

◦ ''Clarice esconde um objeto gritante: notas sobre um projeto abandonado'' escrito por Sonia Roncador: Analise minuciosa em relação ao aspecto introspectivo e autobiográfico da obra.  Há uma natureza ambígua no livro e uma negação ao que seria literatura tradicional. ''Aguá-Viva'' não é conto, nem cronica, nem romance e nem poesia. Como diria a própria autoria, ''É uma pessoa falando o tempo todo.'', ao escrevê-lo, Clarice já sabia que seria muito criticada por especialistas e críticos-literários.

'' — O que te escrevo é um ''isto''. Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas.
É o que está certo.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.'' P. 94


Postar um comentário

0Comentários

Postar um comentário (0)

#buttons=(Ok, Go it!) #days=(20)

Our website uses cookies to enhance your experience. Learn more
Ok, Go it!