''Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado. Não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente pela saída da porta dos fundos.''
Escrito no ano de 1977 por Clarice Lispector. Deve ser a terceira vez que leio esse texto em um curto período e o motivo é que Clarice fica muito mais interessante quando se faz releituras (sim, no plural) possibilitando pescar todas as nuances e camadas presentes na obra. E nesse caso, estamos falando de um livro arrebatador, não tenho outra palavra para descrevê-lo. Inicialmente temos um breve resumo do que seria o nascimento do universo, sua criação. Antes de haver vida e tudo o que há no mundo. Primeiro a síntese da existência precisou ser explicada. Rodrigo S.M. é o autor responsável por essa criação. Tenho uma interpretação dessa história que é bastante particular, mas que para mim faz muito sentido. Trata-se de um texto em múltiplas camadas narrativas (tremenda genialidade de quem o elaborou) onde vemos onde nasceu a relação entre criador e criatura e como ela pereceu.
O criador não gosta nem um pouco de sua criação por achá-la deplorável, produto de sua reflexão. Parece que a todo momento Rodrigo pede desculpas ao leitor por estar escrevendo essas palavras e dando vida ao mundo de Macabea, pois sabe que somente um Deus tão cruel poderia soprar vida a uma pessoa tão vazia de propósito. Mulher sofrida e humilhada.
Antes de iniciar fatalmente os relatos que compõem a história da personagem principal, o autor vai dando várias dicas do que estaria por vir e já adianta ao leitor que não se trata de uma história rebuscada, nem em palavras ou enredo, a história que seguiria é muito simples, na verdade, com poucos acontecimentos e nenhuma catarse, mas são nas entrelinhas que vemos a riqueza de detalhes e talvez com muito esforço poderíamos entender onde o autor (na verdade, autora) estava tentando chagar com essas palavras. Mas se acaso não houver compreensão, tudo bem, segundo o que diz seu criador “Esse livro é um silêncio. Esse livro é uma pergunta”. Não é uma resposta.
Macabea é uma personagem deveras complexa, até mesmo confusa em alguns momentos. Ao mesmo tempo que ela é conformada com as mazelas do mundo “porque as coisas são assim mesmo”, ela também vive se indagando a respeito do que não entende ou consegue compreender. Característica que acaba irritando seu então namorado Olímpico, que não é capaz de responder às perguntas simples, porém, que não possuem uma resposta exata capaz de sanar as dúvidas da moça — quando desejou ter um poço só para ela, perguntou a Olímpico se era possível comprar um buraco —, E quando aconteceu de Olímpico solicitar-lhe que falasse um pouco sobre sua vida — Macabea por Macabea — ela entrou imediatamente em processo de reflexão introspectiva e foi incapaz de dizer qualquer coisa referente a si própria. Novamente fez uma de suas perguntas inquietantes “será que eu sou eu?”.
Macabea é muito, muito inteligente. Mas não é uma inteligência prática que necessariamente possa ter alguma utilidade no dia a dia. E por isso acham que ela é burra. Mas ela se indaga sobre coisas que não entende e não tem nenhuma pretensão de parecer saber mais do que realmente sabe — o verdadeiro burro dessa história é Olímpico.
Voltemos a Rodrigo S.M. Ele que é um homem de classe média alta, intelectual e provavelmente de ascendência ariana, fez uma análise perspicaz referente ao próprio trabalho autoral. Seria ele capaz de descrever com tanta clareza a vida de uma nordestina retirante, pobre e semianalfabeta? Sendo praticamente o oposto de tudo o que ele um dia já foi?
O que ele conseguiu fazer é ter a vontade de ajudá-la traçando em palavras um destino feliz ou quem sabe mais digno para essa nordestina. Mas é somente um desejo interno que ele vai nutrindo conforme escrevia essa obra. Acontece que o livro transcende sua vontade e a trágica vida de Macabea continua sendo o que é “uma história de cordel”, ou seja, será o que tiver que ser, mesmo que seu criador se apieda da melancolia crônica de sua criação. Aqui vemos novamente uma característica quase divina que Clarice Lispector deu a seu personagem, mesmo que ele não dê tanta ênfase ao fato de seus personagens terem livre arbítrio em sua história, ou seja, o autor não poderia interferir no destino de seus personagens, sendo algo irremediável, ela foi dando algumas dicas ao leitor de que isso é uma característica nesse livro. Rodrigo S.M até queria traçar um destino melhor para sua criação. Mas é incapaz. E por isso ele pede desculpas ao leitor, é onisciente (como Deus é) e já sabe que Macabea tragicamente seria infeliz pelos dias que ainda lhe resta de vida.
No início, Rodrigo se pergunta como poderia ele saber dessa história antes mesmo dos fatos antecedentes serem escritos e ele chega a conclusão que um dia cruzou com uma moça muito parecida com Macabea nas ruas do Rio de Janeiro e então a história estava escrita em sua mente antes mesmo dele próprio escrevê-la no papel (explosão); “explosão” é o termo utilizado pela autora para demonstrar que o personagem teve uma epifania e que agora tem a resposta que tanto procura. Foi quando ele finalmente decidiu que deveria abandonar seus devaneios reflexivos e começar de fato a contar os fatos antecedentes de Macabea. É quando a história começa.
Maca também tem seus episódios de epifania. Ela é tão vazia de tudo que vive numa espécie de catatonia crônica, nem mesmo se lembra de quem é quando acorda de manhã. Só após pensar um pouco é que ela se recorda de algumas características pertencentes a sua personalidade e então ela passa o resto do dia performando o que ela acha que é ser Macabea. Sinto que o autor teve certa dificuldade em narrar alguns fatos da história por culpa dessa falta de propósito que a personagem apresenta, mas é em episódios de epifania (explosão) que Maca se recorda um pouco de sua essência, ela se lembra repentinamente que está viva. Que faz parte do mundo. E então sua história pôde seguir do jeito que tiver que ser.
Me impressiona a genialidade da Clarice quando escreveu essa obra. Serei redundante se disser mais uma vez o quão esse livro é complexo.
''Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galaxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.''
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