O demônio vermelho estava deitado no chão da floresta; apagado, desmaiado. Ele não se lembra de quando foi dormir, mas ao que parece muito tempo se passou, pois, a floresta estava diferente, sim, mais verde, mais viva. Bem diferente do lugar desértico que ele recordava como sendo aquele. O dia estava quase acabando, mas ainda estava bem claro.
Mas isso não tem importância, agora ele está acordado e precisa começar sua longa marcha.
Apoiando-se em seus braços — ainda fraco e confuso — ele levantou parcialmente o corpo, ficou de bruços com muita dificuldade, pois ele só pode sustentar o peso de seu corpo usando sua perna (sua única perna), mas a essa hora do dia ela não funciona direito, nada funciona direito.
O Saci está sem sua magia, pois ainda não era noite e seus poderes só funcionam quando a noite cai e o mundo fica tomado pelas trevas.
Ele não sabe onde está, nem quando, o presente e o futuro sal uma incógnita, Saci percebeu que está completamente perdido no tempo. Perdido na própria realidade.
Ele ainda tem lembranças de sua vida passada, não de quando ele era homem (essa lembrança ele havia perdido há muito tempo), mas, ele se lembra de quando o mundo era diferente, de quando as pessoas eram mais sensitivas, elas acreditavam no fantástico e o respeitavam.
Ele viveu em Cerro Branco, uma cidadezinha do interior; conservadora e para no tempo, onde o ambiente era exótico, mais parecia um cenário de um filme clássico dos anos quarenta.
Mas não eram os anos quarenta, Saci não saberia responder à data correta, suas lembranças estavam ficando cada dia mais confusas e nebulosas, elas estavam se perdendo, se dissipando no tempo, e logo não existiriam mais.
Talvez um dia ele acorde no chão de uma floresta qualquer, e de súbito perceberá que não há nenhuma lembrança de sua vida passada, ele não terá ideia de quem ele foi, e de quem ele é.
Saci — E quando este dia chegar eu estarei completamente louco! E a minha existência terá perdido o sentido...
Mas esse dia ainda não chegou, ele ainda guarda algumas suas memórias antigas, de sua vida passada.
Saci se lembra que as casas de Cerro Branco eram feitas de madeira velha: as ruas dessa pequena cidade eram escuras e vazias, não havia vida ou luz; o vento é gélido e impetuoso, quase congelante. Cerro Branco não era um lugar feliz.
Muitas das moradias eram cercadas por muros e portões. Em casa mais pobres, as grades de proteção eram feitas de cercas de madeira e arame farpado. Os moradores não gostavam de deixar suas casas desprotegidas porque um tal de Saci costumava atormentar os habitantes por essas bandas. No início eram apenas boatos, mas em cidadezinhas pequenas como aquela, todo boato tem um fundo de verdade.
E era desse tormento que Saci tirava seu alimento, sua energia e poder.
Saci era um menino demônio de uma perna só que tinha o costume de roubar os pertences mais preciosos dos moradores da cidadezinha. Não que eles tivessem muita coisa para se roubar, todos em Cerro Branco eram muito pobres; miseráveis, ou estavam bem perto disso.
Os pertences que interessavam Saci eram aqueles que carregavam consigo o carinho e afeto que os donos depositavam neles; eram memórias de família, era a perca de um parente querido, ou um presente de um grande amor do passado. Saci se alimenta dessas lembranças, memórias depositadas em objetos. Ele costumava absorver essa energia e a transformava em magia.
Agora, parado naquela floresta, quase desmemoriado e perdido em sua própria existência, Saci fica de bruços e começa a se arrasar no chão feito de areia e pedra. Ele se arrasta, porque sua perna não estava funcionando (ainda não), a noite não estava totalmente formada, e por causa disso ele estava sem poderes, paralítico.
Saci estava fazendo sua marcha diária, no começo ele se arrasta, após acordar de um sono profundo, que podia durar dias, semanas ou décadas, ele se arrasta porque sua perna não funciona direito a luz do dia. mas depois que a lua estivesse cheia no céu isso não seria mais necessário.
Agora o dia estava acabando, o sol já estava indo embora. Saci esboçou um pequeno sorriso de felicidade, Seus poderes logo voltariam, sim.
Ele não tinha esse problema em Cerro Branco, no passado, seus poderes funcionavam de vento em popa. Os objetos o alimentavam, e ele era forte.
Saci não atormentava aquele povo por maldade. Ele gostava de fazer brincadeiras e pregar algumas peças, coisas de menino, claro.
Ele ainda se lembra da sua brincadeira favorita, a que mais o divertia nas noites de lua cheia.
Ele gostava de brincar com gente que costumava sair de suas casas na calada da noite — sem nenhum receio de o encontrar — isso para ele era uma tremenda afronta, nesse caso, Saci passava a seguir a pessoa pela rua, como uma sombra, um encosto, sua presença era imperceptível, pois a pele negra facilmente se misturava a escuridão da noite. A pessoa sentia um frio na barriga, um no na espinha, mas não o via, não podia ver. Ele gostava de sussurrar palavras horrendas de morte, que perturbavam.
Saci invadia a cabeça da pessoa e ali sussurrava.
A pessoa ficava assustada, paranoica, olhando para todos os lados tentando localizar de onde vinha aquele sussurro aterrorizador. Ele não parava, a menos que sua vítima lhe entregasse algum objeto de extrema preciosidade sentimental, algo que serviria de alimento para ele — o que era bem difícil de acontecer — ou a pessoa o alimentava, ou o tormento continuaria.
E a voz de Saci não sairia de sua cabeça, ele continuaria perseguindo, pedindo, implorando, atormentando a pessoa até ela ficar louca, ou grite por clemência, atraindo outros moradores da cidade, nesse momento Saci se retirava, e finalmente a pessoa teria paz. Aquilo divertia Saci, divertia demais, mais infelizmente não o alimentava...
Outro sorriso surgiu em seus lábios, dessa vez, malicioso. Ele se perdera nas próprias lembranças, mas tudo bem, pois as lembranças faziam bem a ele. De certa forma elas o alimentavam.
Agora o dia havia chegado ao fim, a lua já estava subindo, e a noite chegava.
A noite o alimentou. A escuridão preencheu a pele negra, como o abraço de uma amante. Ele se sentiu revigorado, forte como nunca, havia chegado ao fim seu arrastar, sua longa marcha.
Os poderes de Saci estavam crescendo, lentamente, respeitando o tempo da lua. Ele não se arrastava mais, sua perna ganhou força e ele pulou, pulou como nunca. E os ventos o seguiam, as árvores balançavam com força e um grande redemoinho seguia a presença de Saci.
Saci ainda tinha suas memórias, essas lembranças de Cerro Branco ainda o alimentavam e lhe davam poder. A lua lhe dava a capacidade de pular e controlar o vento, mas eram suas memórias que diziam quem ele havia sido, quem ele é – e posteriormente, que ele será.
Mas o tempo não para e logo essas memórias iriam desaparecer. Ele não se lembraria mais de sua antiga vida, e seu "eu" deixaria de existir, só restaria seu poder. Sua existência perderia o sentido.
Saci — É só questão de tempo...
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