''É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um mundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como viver.''
''Verdade é o que eu digo ser verdade. Posso incendiar o mundo e chamar de chuva.''
AS PESSOAS ESTAVAM AGLOMERANDO, todos sabiam que Castelo Alto seria o epicentro do fenômeno, então a praça da cidade estava cheia, de curiosos, de pessoas entediadas com a própria vida que almejam observar algum fenômeno, de cidadãos comuns, que queriam participar da festa. As estrelas chegariam logo, e todos estavam ansiosos para vê-las.
Ametista queria ficar com seus amigos, e ficou aliviada quando viu que Melissa estava chegando. Ela estava quase morrendo de tédio, aquele evento só ficaria interessante de verdade quando todos se reunirem para observar as estrelas, e isso ainda iria demorar alguns minutos
Melissa era sua melhor amiga, e também ficou aliviada quando percebeu que Ametista estava no evento, não fosse por isso, Melissa ficaria sozinha e solitária, como sempre.
Ametista - que bom que você está aqui! poxa! pensei que ficaria sozinha tendo que aguentar toda a chatice do Ludovico - ela disse, dando um belo sorriso debochado - se as estrelas não chegarem logo, eu morrerei de tédio!
Melissa - Ah, nem me fale! você acha que o Matias também virá?
Ametista - Ah, espero que sim, não o vejo desde a ultima sexta-feira - alguns meninos estavam jogando futebol na rua principal. Ametista os observava enquanto conversava com Melissa - Melissa, o que acha que irá acontecer hoje? estão dizendo que será um show de estrelas cadentes, nunca visto antes... mas eu duvido muito.
Melissa - Ah, não espero nada menos que um espetáculo. Ludovico fez toda essa palhaçada na praça da cidade contando com isso. deve ter gastado uma fortuna, aposto que limpou os cofres da cidade.
Ametista - Falando no diabo... acho um absurdo ele fazer esse evento só para angariar mais alguns votos - Ametista franziu a testa, como se de repente lhe surgisse um pensamento critico - Será que ele não vê que isso é ridículo?
Enquanto as duas conversavam, Matias vinha chegando segurando um enorme algodão-doce na mão direita. Ele chegou de surpresa assustando Melissa, que ficou extasiada e lhe deu um soco no ombro.
Melissa - Ah, seu idiota! Você quase me matou de susto! - ela ficou brava, no início, mas depois achou graça e começou a rir - onde você se meteu? não te vejo desde a semana passada!
Ametista assentiu com a cabeça. Surrupiou um naco do algodão-doce de Matias e comeu.
Matias - eu estava trabalhando na oficina com meu pai, não tive muito tempo para ver os amigos - ele deu um sorriso tímido e comeu um pouco do algodão-doce - além disso, duvido muito que as damas sentiram a falta de um pobre plebeu.
Ametista - Matias, sua timidez é o seu maior charme - ela disse, dando seu habitual sorriso debochado - e eu desconfio que você sabe disso!
Matias - Hora essa, senhoras, vocês sabem mesmo como deixar um homem sem jeito.
Melissa - Está animado para ver as estrelas? Estão dizendo que será algo incrível!
Ametista - Bom, eu estou cética. Mas se realmente acontecer como estão prometendo... será ótimo!
Matias - Eu desconfio que os cientistas estão inventando coisas - ele ponderou, e fez uma pausa longa antes de continuar - além disso, nós podemos ver as estrelas todos os dias, basta levantarmos as cabecinhas para o céu.
Ametista - Faz parte da natureza feminina acreditar... então eu acredito, eu acho... - o sorriso debochado estava de volta em seu rosto, Matias o achava adorável - Além disso, não é como olhar para as estrelas no céu, dizem que será como uma chuva de meteoros, elas irão passar a toda velocidade.
Melissa suspirou bem fundo, ela estava maravilhada com a ideia de ver as estrelas caindo do céu. Matias continuava cético, mesmo achando tudo aquilo muito divertido. Ametista estava convencida, ela observava a praça da cidade cheia de gente, todos acreditavam, todos queriam ver, seria lamentável se as estrelas decepcionarem toda aquela gente.
Matias - Já, já vamos desvendar esse mistério, segundo os cientistas, as estrelas passarão pela cidade em 10 minutos.
Melissa - Ah, eu sou a única que acho isso sensacional? - ela disse, demonstrando uma animação contagiante - sério, acho que isso é quase uma manifestação divina!
Ametista deu aquele sorrisinho debochado que Matias acha tão adorável e falou - Poxa! Eu mal posso esperar!
Ludovico subiu em seu palanque, faltavam apenas cinco minutos para as estrelas chegarem, elas dariam um show no céu e Ludovico pretendia dar um belo discurso. Todos na cidade ficariam maravilhados, claro! e estavam se juntando ao redor do palco para ouvirem ele discursar. Todos na cidade gostavam dele, e estavam maravilhados com o evento, a maioria eram pessoas velhas, gostavam de ter alguém para seguir religiosamente, na igreja eles seguiam a Jesus Cristo, e fora dela, seguiam Ludovico, seu discurso era muito semelhante a de um messias, salvador. E as pessoas se convenceram de que ele era a melhor solução para tirar a cidade da crise.
A santa continuava em frente ao palanque de Ludovico, abençoando o evento e a todos. A estátua era feita de gesso branco, muito semelhante a virgem Maria, mas Candelária tinha um rosto bem mais límpido e sereno, quase inexpressível. Tadeu estava por perto para garantir que ela seria respeitada por todos os moradores, ele não poderia permitir que algum dele ousasse blasfemar contra ela - já era blasfêmia demais o que Ludovico tinha feito - e ele queria garantir que as coisas não ficassem pior do que já estavam.
Ele limpava o chão, com a mão direita segurava a vassoura, e com a esquerda segurava a muleta que sustentava seu corpo, era isso que o mantinha de pé. Ele Observava com avidez a imagem da santa, mas felizmente ninguém a estava desrespeitando, apenas chegavam, pediam sua benção e andavam direto para o palanque de Ludovico.
Tadeu - Que ótimo! Acho que vocês ainda não perderam o juízo - ele disse para si mesmo, e continuou varrendo o chão da praça, estava imundo por causa desse maldito evento, e amanhã estaria muito pior - Ludovico. Maldito seja!
Faltavam apenas dois minutos. Ametista, Melissa e Matias estavam bem no início da praça, eles não queriam estar no meio da multidão quando tudo acontecesse. Ludovico estava no centro do Palanque, já preparando para iniciar seu discurso e ali estava uma confusão dos diabos! Tadeu continuava ao lado da santa, resguardando sua santidade, com muito respeito, sempre.
As estrelas chegaram, o céu estava limpo e dava para ver claramente alguns feixes de luz branca passando muito depressa e iluminando a noite. Era muito bonito realmente. Todos estavam olhando para o céu. Poucas pessoas olhavam para Ludovico, nesse momento ele começou seu discurso politico, falando como um verdadeiro homem de negócios, mas não tinha muita gente prestando atenção!
Ametista - Não deu certo, seu idiota!
Matias - O quê?
Ametista - O Ludovico! Ele está falando, mas ninguém está prestando atenção. Todos só querem ver as estrelas.
Matias - Elas brilham muito mais do que ele - matias quase sentia pena de Ludovico - Eu posso sentir daqui à frustração dele. Pobre homem.
Melissa - Calem a boca vocês dois - Melissa estava maravilhada - Olhem! É divino!
Era divino, no início eram apenas alguns feixes de luz, mas logo foi se transformando num show de luzes e cores. As pessoas observavam atônitas, muita gente estava de boca aberta, contemplando o fenômeno, era muito mais bonito do que tinham imaginado. E eles deram sorte de Castelo Alto ser o epicentro e naquele ponto da terra, era onde as estrelas brilhavam mais forte. As estrelas passavam, passavam e brilhavam, e todos estavam felizes e extasiados. Os habitantes de Castelo Alto esqueceram dos problemas, pelo menos naquele momento, esqueceram a crise econômica e a crise hidráulica. Tudo se tornara pequeno, perto da grandiosidade daquele evento. Foi um momento mágico, durante alguns minutos.
Melissa - Olha só para isso, é lindo!
Ametista - Poxa! então era mesmo tudo verdade!
Matias - Cacete! Eu acredito em papai noel!
Mas então, Ametista sentiu uma gotícula de água cair em seu rosto, ela franziu a testa, achou que alguém a tinha molhado, não pensou que podia ser chuva, pois o céu estava limpo. Mas outra gotinha de água caiu em sua testa, e mais outra, e outra.
Ela olhou para Matias, estava um pouco confusa, e viu que ele também recebeu algumas cotinhas de agua no rosto.
Ametista Ei, está chovendo?
Matias - não pode ser garota, o céu está mais limpo que nunca!
Ametista - então que droga é essa que está caindo no seu rosto?
Matias passou com os dedos onde estava molhado, e olhou, franziu a testa, e por um momento também parecia estar confuso.
Melissa, assim como os outros habitantes da cidade, estava maravilhada com o acontecimento, nem notou que seus amigos não estavam olhando para as estrelas, e sim confabulando sobre o líquido misterioso que estava caindo do céu.
Matias - Hora essa! isso aqui não é água de chuva. É muito espesso, mais parece um gel de cabelo.
Ametista - E também é verde! - Ametista achou engraçado, por um momento, mas rapidamente percebeu que aquilo não fazia o menor sentido - Matias, isso está caindo do céu? - não foi uma pergunta, nem uma afirmação, ela simplesmente não entendia o que estava acontecendo.
Mais pessoas estavam sendo molhadas, mais pessoas percebiam que tinha algo de errado acontecendo.
Matias balançou a mão rapidamente, tentou limpar o líquido espesso que estava impregnado em seus dedos - Ah, mais que droga! - ele falou, surpreendendo Ametista - Isso queimou meu dedo. Ametista, eu juro que essa coisa queimou meu dedo!
Ametista ficou chocada. No início ela pensou que Matias estava gozando com a sua cara, mas ela não acreditou muito nisso, pois ela estava olhando fixamente para ele, e a expressão no rosto de Matias não era a expressão de alguém que estava fazendo apenas uma brincadeira, ele realmente estava sentindo dor - aquela coisa verde, que acabou de cair do céu, queimou o dedo dele! -
Ametista - Mas o que está acontecendo aqui? Hein!
Então ela ouviu alguns gritos, de início vinham de longe, entre a multidão que estava em volta de Ludovico, mas então eles aumentavam, e aumentavam, os gritos estavam cada vez mais perto deles. Mais pessoas estavam gritando de dor, como um coral de repleto de dor e sofrimento.
Melissa gritou de repente. Até então ela estava apenas olhando as estrelas passarem, mas alguma coisa a despertou de seu estado de catatonia, ela levou as mãos ao rosto e começou a gritar desesperadamente - Ah, meu rosto está queimando! - ela gritava, com toda força de seus pulmões - Ah, está queimando!
E então, o rosto de Ametista também começou a queimar! Queimava como se tivesse brasas de fogo grudado ali. Ela gritava pedindo por ajuda, implorando para que alguém a ajudasse, mas ninguém podia fazer nada por ela, porque todos ali estavam passando pela mesma situação.
Estava chovendo forte agora, as estrelas ainda passavam no céu, mas ninguém estava interessado nelas, não quando aquele líquido estava praticamente carbonizando eles vivos. As pessoas gritavam, gritavam e choravam. O líquido, espesso, que parecia um gel de cabelo, caia do céu como se fosse chuva, em abundância. Todos estavam encharcados dele. Todos queimavam como se estivessem no inferno!
Matias chorava de dor. Seu rosto estava queimando como nunca. Mas mesmo assim, ele pode perceber que algo de estranho estava acontecendo em suas calças. Ele estava tendo uma ereção! Como podia, em meio a tanta dor e sofrimento ter uma ereção? Nesse momento ele se sentiu enojado, e com vontade de vomitar, teria feito isso, se a dor não fosse muito maior que a ânsia de vômito.
Ludovico, não estava entendendo nada, mas sabia que algo de muito errado estava acontecendo, as pessoas gritavam feito loucas, mas porque? Ele não estava sentindo nada, pois o teto do palanque o protegeu da chuva. Algumas pessoas tentavam invadir o lugar, para fugir da chuva e da dor, mas não conseguiam, estavam fracas e desorientadas. Naquele momento, muitos deles pediam pela morte. Mas a morte não chegava.
Tadeu Continuava ao lado da santa Candelária, ele não podia correr, era manco e correr seria impossível. Apenas ficou ali, estava deitado no chão, sentido aquela dor que o queimava de fora para dentro. Era alucinante. A estatua estava encharcada com aquele líquido, e Tadeu sentiu uma pontada de inveja dela, estava sentindo tanta dor que nem passou pela sua cabeça que aquele sentimento era um tanto quanto absurdo.
Tadeu - Ah, minha santa, você é feita de pedra e não sente essa dor. Como eu a invejo! Como eu a invejo!
A chuva continuou por mais cinco minutos, todos queimavam, a cidade queimava!
Tadeu estava lucido o bastante para olhar fixamente para a santa e fazer uma última oração, antes de chegar sua tão esperada morte! Ele a olhava fixamente, aquela santa encharcada com aquele líquido da morte – Meu Deus, que tristeza!
Ele estava rezando o ''pai nosso'' – e olhando fixamente pra ela, foi quando percebeu algo muito estranho acontecer, o sorriso da santa fez um leve movimento pra cima. Como se Candelária estivesse viva - e dando um sorriso perante aquela situação horripilante. Ele achou que era uma alucinação causada pela dor e do sofrimento que estava sentindo. Mas ficou perplexo ao perceber que a expressão no rosto da santa realmente mudou. Ela antes exibia uma cara contente e maternal, mas agora estava relativamente tristonha e com o rosto franzido, mantendo aquele estranho sorriso nos lábios, como se estivesse feliz, mas os olhos diziam outra coisa, era como se ela estivesse muito preocupada.
Havia algo de macabro e assustador naquela nova expressão de Candelária.
Tadeu interrompeu sua oração e olhou para outra direção, mesmo quase morrendo de dor, ele não podia acreditar no que acabou de ver. não podia ser real, não mesmo. Ele só podia estar vendo coisas, tendo alucinações. Era a única explicação.
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Quando a chuva passou, as estrelas já não estavam mais no céu. Todos na cidade estavam no chão, agonizando, ainda sofrendo e tentando entender o que havia acontecido. Fora tudo tão terrível que Ametista desejou ter morrido, e ficou frustrada ao perceber que ainda estava respirando, e que ainda podia sentir aquela dor.
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"A tempestade chegou
e não conseguimos a impedir
tudo mudou
e eu parti, eu cai como a chuva..."
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