Ele já havia elaborado inúmeras palavras na construção daquele que seria seu próximo livro. Houve um tempo em que ele conseguiria terminá-lo antes mesmo do amanhecer, quando era mais jovem, tal qual sua mente, uma verdadeira maquina capaz de criar e tornar real o que antes existia tão somente na inexistência de sua imaginação. Funcionava quase como se fosse um enorme formigueiro cheio de boas ideias. Suas formigas, eram seus personagens, e elas se apresentavam em furor na esperança de ser o tema principal de seu próximo romance a ser publicado. Mas agora as coisas mudaram, as ideias vinham esporadicamente e em ritmo lento, ele já não é mais tão jovem e muitas de suas formigas já haviam deixado de existir antes mesmo de serem parte da realidade. Apesar de ser um bom contador de histórias, não considerava-se um bom criador de histórias, isso é, ele só conseguia produzir algo novo a cada três anos, talvez dois, se estivesse em uma fase boa e isso o deixava frustrado, pois só sabia fazer uma coisa na vida, apesar de fazer muito bem, era em ritmo lento, quase parando.
Depositou o lápis em cima da bancada, que deslizou até a borda e caiu no chão, partindo em dois pedaços. Mas ele não ligou, não importava mais, estava quase desistindo de dar continuidade aquela história que parecia não ter mais fim; foi quando algo lhe chamou atenção, um sentimento de culpa irracional começou a invadir sua alma e a preencher o vazio habitual a quem ele já tinha como velho amigo. Olhou para a pilha de papéis amassados pelo chão e em toda a extensão do quarto, para o manuscrito que estava depositado a sua direita, um montante de palavras que davam vida a seu novo personagem, mas que o mantinha perdido em sua própria existência, pois tratava-se de um jovem que estava prestes a formar-se no ensino médio, um jovem que deveria buscar qualificar-se para ser o melhor de sua futura profissão, mas antes, claro, viria a faculdade. Porém, o garoto não tinha a menor ideia do que queria fazer da vida. Coisa natural vindo de um rapaz dessa idade, estar perdido em muitos caminhos e não conseguir dar continuidade a nenhum. Quando você não sabe para onde ir, qualquer caminho servirá para você; mas pior mesmo é quando você tem medo de tomar iniciativa seguindo tão somente sua intuição, quando nenhum dos caminhos parece ser tão seguro e então você decide não ir a lugar algum. Você perceberá, talvez quando for tarde demais, que sua vida estagnou-se na mediocridade e na monotonia. Era esse o dilema que seu personagem estava enfrentando.
O problema é que essa dúvida não era tão somente exclusiva de Nataniel Ribeiro (esse era o nome do jovem rapaz que existe tão somente na imaginação desse confuso autor), mas também era uma dúvida dele próprio, que por não ter uma resposta segura para direcionar os rumos de sua criação, acaba por não oferecer-lhe resposta alguma. Ele estava enfrentando o que podemos chamar de bloqueio criativo. Pensou inúmeras vezes em abandonar aquele texto e partir para outro, já havia pensado em fazer isso outras vezes, com outras histórias. Ele nunca chegou as vias de fato, pois em algum momento ele sempre chegava a alguma conclusão satisfatoria. Além do mais, ele não conseguiria abandonar nem se quisesse , pois algo sempre o incomodava ardentemente para não fazê-lo, quando pensava no assunto sentia uma comichão enrome dentro de sua cabeça, como uma coceira latente que ele não podia coçar. Era a vez de Nataniel, ele tinha certeza, querendo muito desabrochar, mas sendo impossibilitado pela ignorância de seu criador. Que, ao não saber quais rumos daria para sua história, acaba por não dar-lhe rumo algum. E ele ficou perdido na não existência das palavras, uma vez criadas, mas jamais terminadas. '', Mas isso não é justo!'' protestou Jeremias Patclov — aqui apresento-lhes seu nome — ''Não foi por falta de tentativa'', argumentou ele para o quarto vazio, como se estivesse justificando sua incapacidade para uma enorme plateia que estivesse julgando severamente cada um de seus passos. Ou melhor, cada movimento de seus dedos ao escrever a história de vida do jovem Nataniel. Mas não havia mais ninguém naquele comodo escuro, que estava abafado como uma sauna. Havia somente Ele e as palavras em papel escritas por Ele; a partir disso podemos concluir que existia Nataniel naquele quarto, e seu mundo como ele bem conhece, com todas as pessoas que Jeremias criou para dar continuidade a história. E também havia as pessoas que ele nem chegou a criar, mas que simplesmente existem naquele universo. Porque é assim que funciona em qualquer existência observável, lida ou escrita. Algumas pessoas simplesmente existem para dar sentido ao mundo de pessoas mais reais e funcionais nessa equação. Se Nataniel é o protagonista de sua história, todas as outras criaturas são os figurantes de sua história e Jeremias nunca se deu ao trabalho de criar cada um deles com o mesmo afinco que criou Nataniel. Uma criação só já dava muito trabalho. Imagina a ideia de ter que gerenciar milhares de outras vidas, isso certamente o deixaria louco.
Talvez, esse problema de bloqueio não existiria não fosse pelo excesso de zelo que o criador tem por sua criação. Como ele bem ponderou, Nataniel está sem direção nessa nova fase de sua vida, mas não foi por falta de tentativa, logicamente, houve destinos traçados pelo autor que resultaram em uma enorme catástrofe na vida do jovem rapaz. Ao escrever certas situações, na tentativa inútil de terminar seu romance, surpreendeu-se ao perceber quantos caminhos tão difíceis existiam em sua inconsciência (que se mostrava viva em cada uma de suas histórias), e ele obrigou seu personagem a seguir em várias daquelas direções tortuosas na esperança de que algum deles lhe traria algum resultado satisfatório. Ledo engano. Muitos desses caminhos só o fez sofrer quando percebeu que sua criação também estava sofrendo, mas sem nem saber o porquê; mas Jeremias sabia, e sofria talvez por saber demais. Papéis espalhados pelo chão, que ele deveria ter jogado fora no dia anterior, mas não teve coragem, uma vez que aquilo também fazia parte de sua criação, apesar de tê-los descartado tão somente acabou de escrevê-los. Olhou em volta percebendo a enorme bagunça que criou e teve repentinamente a percepção de que aquilo mais parecia as constelações de um enorme sistema solar, um grande universo observável no chão de seu quarto. Jeremias não parava de criar mais estrelas, planetas, cometas, papéis amassados recheados de Nataniel que eram arremessados diretamente no chão rumo ao esquecimento. ''Esquecimento de quem?'', Jeremias lembrava-se de cada uma daquelas palavras, jogá-las fora não o fazia esquecer, muito pelo contrário, parece que elas estavam sendo jogadas na enorme lixeira que era sua inconsciência, e tudo que fazia parte daquela parte obscura de sua mente voltava para lhe assombrar em seus sonhos mais tortuosos, e também em seus pesadelos. É por esse motivo que ele precisa exorcizar Nataniel por completo, isso é, terminar de escrever toda sua história. Tinha certeza que só então teria paz. O cenário de seu quarto parecia um resultado inconsciente de sua mente caótica e solitária.
Havia um enorme tapete de cor azul-marinho posicionado no centro do aposento, sua cama ficava no canto a direita, mais distante de todos os outros moveis, era coberta por um enorme lençol branco com duas nuvens fofas que eram seus travesseiros. A esquerda ficava sua bancada de trabalho, era feita de uma boa madeira de carvalho, escura e rija, como deve ser; as paredes eram pintadas de preto, mas havia quadros decorando o ambiente e preenchendo o enorme vazio que Jeremias ás vezes sentia antes de os ter colocado ali; acima de sua bancada havia dois, um homem e uma mulher, o homem estava nu e transparecia virilidade, mas também inocência. A mulher tinha os cabelos cobrindo os seios, pois também estava nua, graciosa e sedutora. Era adão e Eva no jardim do éden. Acima de sua cama havia um pescador solitário velejando em meio a uma enorme tempestade vinda do horizonte, era um quadro assustador, pois o semblante do pescador denotava medo e preocupação, mesmo que fosse difícil ver seu rosto, pois era coberto por uma longa barba branca que caia sob o peito do velhote. Seu quarto era deveras vazio de muitas coisas, pois era um comodo bem grande, mas além do que já mencionei, havia um belo lustre de cristal preso ao teto, ficava no centro, com oito castiçais redondos carregando lampadas de variadas cores, mas de fraco alcance, havia também uma enorme lampada vermelha central que servia para iluminar as demais, mas nenhuma delas brilhavam ainda, elas tinham data e hora marcada para produzir sua luz.
Além de sua simplória decoração, havia o ''lixo'' espalhado pelo chão que era o fruto de seu árduo trabalho sendo criador de pessoas e histórias.
Levou a mão direita até seus cabelos, eram lisos e negros como a noite, e coçou intensamente sua cabeça na esperança de livrar-se da persistente comichão que insistia em atormentá-lo. Mas foi inútil. Não era exatamente uma simples enxaqueca. A sensação era de que havia milhares de pequenas formigas caminhando por dentro de seu cérebro. Tinha quase certeza de que a qualquer momento sairiam pequenas formigas de suas narinas, orelhas e olhos. Tamanha era a semelhança entre sua crônica agonia com os formigueiros que via no quintal de sua casa quando era pequeno. Apesar de incomoda, ele não reclamava de sua condição, era isso que o forçava a trabalhar, mesmo que em ritmo lento, ele estava criando universos inteiros e isso era bom. Havia muita coisa em sua cabeça querendo vir ao mundo, por isso a dor, ele precisava colocá-las para fora o quanto antes. Sentia-se orgulhoso, poucas pessoas têm o poder de fazê-lo. Pensava também em seus leitores, que gostavam de suas histórias, de seus personagens e aguardavam ansiosamente a publicação de cada um de seus trabalhos, era por eles que ele insistia em continuar escrevendo. Mas também era por ele próprio. A cada nova criação, ele via que era bom.
Levantou-se de sua cadeira e foi caminhando na extensão de seu dormitório, que também era seu local de trabalho. Na prosa consigo mesmo, que de tão secreta nem mesmo eu (o narrador dessa história) consigo mensurar suas palavras, Jeremias chegou a conclusão de que talvez tenha jogado fora boas ideias que iriam traçar um destino certo para Nataniel — talvez não fosse mesmo um bom destino, mas paciência, poucas pessoas possuem tamanha sorte na vida — mas talvez um destino qualquer era melhor do que destino nenhum. Talvez por isso não estava encontrando uma resposta para suas dúvidas, pois já havia encontrado, porém, a descartou como todas as outras. Eram tantas bolinhas de papel que certamente não havia bloqueio criativo nenhum, sim, ele tinha muitas ideias, o problema aqui é que ele não aceitava nenhuma delas como aceitável ou razoável, boa o suficiente para adentrar em seu romance e fazer parte da lore de seu mais novo universo. Andava pelo quarto em círculos em um fluxo de pensamentos, com as mãos para trás como se fosse um militar, Jeremias é alto e muito magro, corpo não muito belo, mas estranhamente atraente, seus olhos são tão negros quanto seus cabelos e esses olhos estão olhando em muitas direções ao mesmo tempo, buscando por algo que nem mesmo ele sabe o que seria de fato.
Talvez uma resposta. Ele sabe que ela existe, só não descobriu ainda onde ela se encontra.
Chutava muitas bolinhas de papel, descartando-as para sempre e nunca mais. Mas outras ele evitava pisar, apesar de não ter a menor intenção de pegá-las e ler seu conteúdo, também não achou serem dignas de tamanho desprezo. Se os papeis eram como estrelas em uma enorme constelação, então naquele momento ele estava causando uma enorme festa no céu. O pensamento fez surgir um sorriso no canto de sua boca, apesar de achar que a ideia fosse um tanto quanto inquietante, ainda que irreal, até onde ele sabia ou podia saber. Ponderou por um breve momento, parou de caminhar e teve toda sua atenção voltada para um de seus descartes jogados pelo chão, ele soube, simplesmente soube que havia algo ali que talvez valesse a pena recordar. Virou todo seu corpo para direita e foi na direção de um manuscrito que jazia abandonado no canto mais escuro do quarto. Não se lembrava quando foi exatamente que havia descartado aquela que era só mais uma de suas ideias. Mas isso não importa muito, havia alguma coisa ali que merecia sua atenção. Ele podia sentir. Desamassou com cuidado o papel, que já estava um tanto úmido (talvez fosse pela chuva da noite passada) e começou a ler seu conteúdo.
Era um episódio narrando a primeira vez de Nataniel com uma garota de sua idade, sexo na adolescência, que tende a ser caótico:
''Houve uma confusão naquele momento de excitação quando percebeu que a garota já não estava mais acordada, ao menos não totalmente, eles estavam na casa de Rogério — um amigo em comum do colégio — e todos os jovens haviam bebido demais. A garota, um pouco mais do que a maioria, já estava mais para lá do que para cá, mas de início ela estava querendo. E Nataniel também. Seu pênis estava ereto como nunca. E ele estava doido para botar para dentro, mas ponderou em dúvida se deveria mesmo fazer o ato nessas circunstâncias, mesmo sendo um jovem de 16 anos tinha a consciência de que aquilo poderia acarretar estupro. O problema foi que Rogério, como também dois de seus amigos, não tiveram o mesmo raciocínio quando entraram no quarto onde estavam os dois, com a desculpa de que queriam tirar algumas fotos. E decidiram sem mais nem menos que queria participar da brincadeira também. Nessas circunstâncias, não era mais o ato de amor imprudente entre dois jovens, e sim uma bacanal entre quatro jovens e uma garota semi nua, semi acordada e segundo ela mesma, semi virgem. Foi quando Nataniel…, ''
Jeremias interrompeu a leitura. Lembrou-se do porquê descartara essa ideia e a jogou fora, de fato, foi consumado o ato e a menina acabou traumatizada e gravida, sem saber qual dos quatro rapazes era o pai da criança. Nataniel tinha menos culpa do que os outros na situação, mas participou, ainda que relutante, o que acarretaria sua prisão capítulos depois. Logo após o suicídio da moça, que traumatizada, não via a menor possibilidade de ser mãe nessas circunstâncias. Descartou esse capitulo por achá-lo trágico até demais. Queria um destino melhor para o seu menino. E não queria que seus leitores pensassem no quanto seu protagonista fora um tremendo canalha. A pouca idade certamente não era desculpa. Descartou novamente este capitulo, mas lembrou-se de ter escrito inúmeras situações continuadas dessa linha de raciocínio, lembrava-se de ter escrito algo sobre o filho de Nataniel acabar indo para em seus braços após a morte da jovem mãe (porque, sim, o filho era dele), e então agora ele era um pai solteiro, sem estudos, sem emprego e recém-saído do instituto para jovens infratores. Sua mãe, que era uma mulher muito rígida, para castigá-lo, não o deixaria mais morar em sua casa, disse que aceitaria o bebê, mas ele não. A família da moça exigia que ele deveria trabalhar para sustentar a criança, dessa forma deixaram-no cuidando do bastardo para ensinar responsabilidades. É quando Nataniel, com raiva, decide fugir para bem longe de todos, levando tão somente seu filho nos braços. Pegou as chaves do velho fusca de seu pai e partiu estrada afora, resultando em muitos capítulos de uma aventura irresponsável de um jovem rapaz tentando sobreviver nesse mundo de cão com seu filho pequeno nos braços e sem nenhum dinheiro. Vários papeis jogados pelo chão eram descrições de aventuras que seguiam essa linha de narrativa. Mas com algumas variações, claro, numa delas Nataniel descobre que contraiu o vírus HIV naquela fatídica noite de sexo irresponsável, percebendo que a garota não era tão ''semi virgem'' assim, afinal. Ou teria sido um dos outros garotos? Não importa, ele teria de voltar para casa correndo, pois, percebendo que a progenitora de seu filho era uma potencial soro-positiva, seu bebê tinha certamente herdado a mesma condição. E eles não poderiam continuar na rua se estivessem doentes, claro que não.
Amassou novamente o pequeno manuscrito e o jogou no chão. Sim, havia algo interessante ali que certamente iria deixar seus leitores intrigados e querendo ler o próximo capítulo da vida penosa de Nataniel. Mas não é esse o destino que Jeremias deseja para o menino de seus olhos, ele queria algo melhor, mais digno. Pois o amava, passou a amar o menino assim que o concebeu e faria de tudo para protegê-lo, ainda que não possa. Seu receio é que não consiga fugir da morbidez de sua inconsciência cada vez que fosse mensurar a vida de seu jovem garoto em palavras, para dar continuidade a sua existência. Não queria abandoná-lo. E nem poderia, a comichão em sua cabeça não permitiria. Além disso, ele próprio estava querendo saber como terminaria os dias do rapaz loiro e magricela que ele primeiro imaginou e depois tornou real ao dar-lhe folego de vida com suas palavras. Já havia delineado diversos destinos distintos ao rapaz (o entrevero de papel espalhado para todo lado indica isso), mas cada vez que ele estava indo longe demais no fracasso desalinho de uma vida não bem-sucedida, que ele responsabilizava tão somente a inconsequência de Nataniel, decidia sem o menor arrependimento rasgar tudo e começar tudo outra vez do ponto onde parou.
Sentiu um pigarro querendo sair de seu nariz e o assoou com um pequeno paninho que guardava no bolso da calça jeans. Mas não era pigarro nenhum, era somente a velha e habitual coceira que descia de sua cabeça e às vezes ia parar em algum de seus orifícios. Desse vez foi o nariz — ''Argh'', fez ele, fungando, tentando livrar-se do que parecia ser um acesso de rinite, mas falhando miseravelmente.
Agachou-se novamente e pegou mais um membro da constelação pertencente a Nataniel. Era um outro universo de uma mesma história, aqui Nataniel nunca teve filho nenhum, porque jamais transou com garota alguma. Desamassou-o e leu seu conteúdo com certo desânimo, talvez por saber que era uma procura inútil. Não seria em manuscritos descartados que ele acharia um caminho.
''Chegando as férias de verão, aceitou um emprego de meio período na oficina de Zé Maria, amigo de seu pai, não estava contente, pois achava que poderia conseguir coisa melhor, apesar de não querer conseguir coisa alguma, afinal, eram suas férias e ele queria ficar à toa o restante do mês. Mas seu pai não permitiria tal ousadia, não sem ter um bom motivo para ficar vagabundando ao invés de ir trabalhar, eles eram classe média baixa e o salário dele, apesar de ser uma mixaria, já ajudaria dentro de casa ''. '' — Então Nataniel tratou de dar-lhe motivos'', seria essa a continuação dessa linha narrativa, ensaios do rapaz fazendo tarefas mal feitas a fim de ganhar uma suspensão, o quem sabe até mesmo uma demissão, assim ficaria livre para fazer as atividades que ele gosta realmente de fazer, mas que na opinião de seu pai (e de qualquer outra pessoa) eram hobbies inúteis e perda de tempo, jogar no computador, ler gibis e se masturbar. O menino era um poço de irresponsabilidades e imaturidade e qualquer caminho que ele fosse a postos e operante, iria falhar miseravelmente. Apesar de não querer ou desejar tal situação, Jeremias não conseguia evitar, era mais forte do que ele; mais forte do que os dois, uma vez que Nataniel nasceu pronto, apesar de ter sido criado. Teria como ele agir diferente, ora pois? Todas as tentativas foram falhas, sempre que o autor descartou certo manuscrito por achar que os rumos de seu personagem não eram sequer dignos de serem lidos, indo numa outra direção, utilizando de outras situações, acabou que Nataniel estava de novo numa dessas situações corriqueiras da vida em que ele toma uma atitude irresponsável e impensada acarretando sua própria ruína.
Os originais estavam em cima de sua mesa esperando para serem concluídos, nele, havia um excelente romance sobre a juventude caótica de um rapaz irresponsável prestes a sair do ensino médio e pronto para ingressar na faculdade, como tantos outros que estavam na mesma situação. Haveria mesmo faculdade? Considerando a situação financeira daquela família, era de se duvidar; por isso, é importante que o rapaz trabalhe antes de estudar (quando o mais natural seria o contrário), mas estamos falando de um jovem cabeça de vento que só quer ficar à toa, Jeremias estava tentando ajudá-lo, mas estava ficando impossível.
Depositou o manuscrito exatamente onde ele achou. Objeto de descarte, nem deveria ter sido tirado do padrão estelar para início de conversa.
Passou por sua cabeça que esse personagem só sabia fazer sujeira para ele limpar. Seu quarto estava uma bagunça, que não poderia ser limpa até que a história de Nataniel fosse totalmente escrita e isso levaria tempo. Sabe-se lá quanto tempo. Ele mal conseguia andar pelo cômodo sem tropear nos inúmeros manuscritos que hora estavam espalhados pelo chão, hora estavam sendo coletados por ele para análise de conteúdo a fim de tentar reaproveitar o que já havia sido descartado. Tudo o que ele estava fazendo até então era perder tempo, na tentativa desesperada de limpar a sujeira que Nataniel estava deixando por seu caminho. Além de que havia muito lixo produzido por sua mente que precisava ser posto para fora quanto antes, a comichão que sentia aumentava a cada dia e ele podia jurar que sua cabeça estava ficando cada vez maior, como um balão que vai inflando conforme entra o ar, de fora pra dentro. Mas no seu caso era algo de dentro que precisava desesperadamente ir para fora. Lixo. Coceira. A ideia de que havia aquelas inúmeras pequenas formigas dentro de sua mente tinha a ver com a constante sensação de que os mais diversos caminhos estavam sendo abertos em seu cérebro, como se fossem os tuneis de um enorme formigueiro, a cada novo caminho, uma nova vida era escrita para Nataniel, mas o próprio Jeremias as rejeitava com receio de que não fosse uma vida justa para sua amada criação. E então ele trilhava um novo caminho, e outro e mais outro e outro.
Levou as duas mãos até a cabeça e novamente coçou inutilmente os cabelos, com certa força, seus dedos alcançavam o couro cabeludo e o estavam machucando, mas ele não ligou. A dor era melhor que a coceira. Mas ele ponderou, algo estava nascendo de sua inconsciência, como todas as suas ideias, mas essa era diferente, porque era outra compreensão de sua criação. Se Nataniel só produzia sujeira, era com a sujeira que ele teria de lidar. Descobriu repentinamente que não havia criado um personagem que busca ter um raciocínio lógico referente aos entreveros da vida. Se os pais o expulsam de casa com um filho no colo, ele não diz a eles que ficará na casa com a condição de conseguir um emprego para sustentar seu filho. Ele simplesmente rouba as chaves do carro e vai-se embora mundão afora, levando somente seu filho e um sonho na cabeça, sonho de viver na sombra tendo água fresca. Quando seus pais tentaram lhe ensinar a ter responsabilidades, ele foi ainda mais a fundo na irresponsabilidade inconsequente tão característica dos jovens. Nem mesmo um filho teve o poder de fazê-lo crescer e amadurecer, Jeremias constatou que Nataniel jamais deixaria de ser jovem, nem mesmo quando estivesse com 35 anos, 40 ou até mesmo 60, ele seria sempre jovem. Se fosse para a faculdade, provavelmente iria pegar uma suspensão por entrar no banheiro das garotas, sabe-se lá o porquê; não iria fazer os trabalhos em grupo, deixando seus colegas na mão para fazerem o trabalho por ele, mas mesmo assim Nataniel exigiria ganhar seus pontos de participação. Nataniel era um artista, tinha o pensamento lúdico, aquele que só olha para o futuro, ou seja, aquele que pensa sempre naquilo que não existe (ainda), ele nunca está no presente, portanto, ninguém poderia culpá-lo por sua mais completa falta de noção de responsabilidades.
Houve um clarão no quarto quando o centro do lustre de cristal iluminou-se de modo rubro e os oito castiçais produziram sua própria luz, eles sempre brilhavam no mesmo horário e Jeremias supôs que lá fora já devia ser o entardecer. Houve uma profusão de muitas cores no quarto inteiro, que antes só havia breu, mas agora, parecia uma verdadeira mandala multicolorida, pois as cores se misturavam e dançavam nas paredes e no chão do recinto. E a alma de Jeremias dançava junto com elas. Era seu momento preferido do dia, sempre que as cores apareciam, as ideias em sua mente se tornavam alvas como o quartzo, era uma espécie de alquimia que ele não sabia explicar muito bem, mas que nunca falhou. Tantas histórias ele já escreveu, tantas constelações de papéis se formaram no chão daquele quarto. Mas sempre que as lampadas coloridas do lustre faziam dançar sua alma, ele achava a resposta para suas dúvidas. No final dos trabalhos ele podia ver que era bom.
As constelações que jaziam por cima do tapete azul agora eram um atestado de vida que Nataniel terá assim que for concebido ao mundo através das palavras de seu autor. Como poderia Jeremias descartar todas aquelas experiências se foram todos aqueles fracassos que o fizeram chegar a conclusão obvia, que o garoto é um transgressor nato e sua história não será ambientada em um escritório, usando terno e gravata (a faculdade iria lhe proporcionar isso). Ele pode ver com muita clareza agora, em algum momento de seu tempo de vida, o menino Natan será um homem com a pele queimada pelo sol, andando sem camisa e com algumas tatuagens espalhadas pelo corpo, marra de surfista, sem filhos, mas com muitas mulheres. Gozando de seus 35 anos. O livro se passa numa praia. Talvez seja a história de como Natan desaparecerá em alto mar e ninguém mais terá noticias suas; deu-se que ele caiu de seu barco e bateu a cabeça em algumas pedras pontiagudas, seu corpo fora fatalmente levado pelo mar e seus pais não puderam enterrá-lo do modo tradicional, resolveram então fazer uma cerimônia religiosa em homenagem ao filho rebelde; mas muito antes disso acontecer, ele seria o garoto que, sem a menor experiência de vida, desejava muito transar com aquela colega da escola, aquela moça bonita e semi-virgem, mas nem tão virgem assim.
Ele escreveu. Terminou o livro. E Nataniel ganhou vida através daquelas palavras.
Nas primeiras paginas era só um bebê, nas últimas, era um corpo sem vida sendo levado pelas ondas do mar na direção do infinito. Mas antes dele existir, existiu Adão e Eva, porque foi essa a concepção original daquele mundo onde ele futuramente viveria. E logo após, muitos e muitos anos depois, teve o pescador. Um homem velho, que usufruía de uma longa barba grisalha que descia até seu peito, ele tinha o semblante preocupado, demonstrava medo e preocupação, eu poderia dizer que era resultado da tempestade que se formava no horizonte, mas não era isso que o assustava naquele momento, e sim, ele estava encarando um defunto em decomposição boiando naquelas águas que deveriam estar tranquilas, mas que naquele momento estavam mais caóticas do que nunca!
Jeremias suspirou, sentia-se aliviado, pois era mais um trabalho que chegava ao fim. A comichão em sua cabeça deu um repentina trégua, mas algo desceu na direção de sua narina esquerda e ele pigarreou escarrando uma grande formiga negra, da bunda gorda e olhos acusadores. Ela foi jogada na direção da bancada e em meio aquela bagunça, deu tempo de olhar para sua antiga morada antes de desaparecer para sempre — ''Olá, Nataniel. — Jeremias disse com a voz embargada. A formiga nada respondeu, apenas encarou aquele homem por mais alguns instantes antes de correr para trás da bancada, tencionando desaparecer por completo e para sempre — ''É isso que todas vocês sempre fazem. Nem mesmo se dão o trabalho de agradecer-me'' Ele disse, mas ponderou — ''Talvez queiram me matar. Sou o responsável por dar-lhes a vida. E a vida tende a ser dor e sofrimento. Na maior parte do tempo, faço de tudo e mais um pouco para tencionar o melhor destino, mas não é o suficiente, nunca é''.
Ele deu um último suspiro, levantou-se e foi na direção de sua cama, pois estava cansado e precisava dormir. O quadro do pescador foi aos poucos desaparecendo, tornando-se uma imagem borrada e incompreensível, que logo seria substituída por outra coisa. Característica do próximo personagem que seria delineado por Jeremias tão logo o sol nascesse no dia seguinte. A coceira em sua cabeça foi voltando aos poucos, no início bem fraca e tímida, mas logo estaria insuportável e ele precisaria expurgar para fora mais uma de suas formigas. As informações viam naturalmente, mas a maior parte de tudo ele precisava descobrir sozinho. Estava tudo dentro de sua inconsciência caótica e criativa, mas não significa que ele tenha acesso a esse conhecimento sempre que bem entender, às vezes criar era explorar um campo minado cujas armadilhas estão bem na sua frente prontas para explodir, mas você se vê obrigado a pisar nas bombas mesmo assim. Às vezes o quadro na parede lhe dava alguma dica, mas às vezes não.
Ele se perguntou quantas formigas mais haveriam de nascer até que ele pudesse descansar em paz sem ter que pô-las para fora, pois já estava cansado de vomitá-las. No dia seguinte, lembraria de perguntar para a inconsciência quanta formigas há no universo. Seu universo.
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