
1) Coisas estranhas acontecem em Castelo Branco.
Assim que caíram as estrelas, repentinamente começou a chover em toda a cidade.
As pessoas foram pegas de surpresa ao sentirem um líquido espesso, pastoso e gelatinoso escorrendo pelo corpo. Não era água de chuva, mas sim algo desconhecido pelos homens, e bem perigoso; uma substância que, ao entrar em contato com a pele, lhes dava a sensação de derretimento e queimação; as pessoas sentem náuseas; perda dos sentidos; confusão mental e, por fim, sentem dor, muita dor. Aquela "chuva" durou apenas alguns minutos, mas para quem estava debaixo dela, pareceram várias horas. A população foi sendo alvejada implacavelmente durante todo o espetáculo das estrelas. Eles estavam em agonia, e todos eles gritavam.
Mas assim que a "chuva" passou, aos poucos os habitantes foram recobrando os sentidos, muitos continuaram jogadas no chão, mas outros simplesmente levantaram-se e voltaram para suas casas. Contudo, nem tudo estava tranquilo, pois o pesadelo ainda não havia terminado; houve consequências inimagináveis em Castelo Branco, nos dias seguintes, fenômenos inexplicáveis passaram a acontecer em toda parte e os habitantes da cidade tiveram que adaptar-se a nova vida;
Quando Paul Walker foi atingido pela "chuva" ele ficou deitado no chão da praça durante muito tempo, até a dor passar, mas ela não passou, e ele gritou de dor durante três dias seguidos. No quarto dia, ao voltar para casa, ele percebeu que uma estranha protuberância estava crescendo no centro de sua mão esquerda, a palma estava com uma cor opaca e fora do comum. O tempo foi passando e sua mão foi ficando cada vez mais inchada e desenforme. Ela exalava um cheiro desagradável de putrefação. Paul não demorou para perceber que um de seus membros estava apodrecendo dia após dia, pelo que parece, a chuva teve um estranho efeito de decomposição sobre ele, e a doença estava se espalhando. Numa bela manhã, ele percebeu que agora, o cheiro de podridão vinha também de seu braço direito;
Tadeu, o faxineiro da cidade, não podia mais fazer seu trabalho, pois ficou completamente ensandecido após ver a estátua da Santa Candelária esboçar seu pequeno sorriso, perverso e macabro. Aquilo aconteceu enquanto todos na cidade estavam sendo alvejados pela "chuva" das estrelas e gritavam de dor e agonia, de fato, foi um fenômeno bizarro e assustador, que destruiu Tadeu e o fez duvidar de suas crenças.
Tadeu sempre foi um homem de muita fé, mas essa fé morreu, e ele estava começando a pensar que talvez exista algo muito maligno neste mundo, mais influente que Deus, e talvez mais forte. Ele enfrentou uma longa temporada sendo consumido pela depressão, pela dúvida e principalmente pelo medo. Jurava que ainda podia ver o sorriso da Santa, ela aparecia em seus sonhos, com os braços abertos, lhe oferecendo um fatídico abraço maternal. Às vezes, ele nem mesmo estava dormindo, mas jurava ter visto a figura da santa nas sombras de sua casa, nas esquinas e vielas, durante a noite, em todos os lugares. Ele estava ficando maluco.
Foi numa tentativa desesperada de acabar com a dor (e com esses pesadelos) que Tadeu arrancou os próprios olhos, usando um alicate de pedreiro;
Annie Wilkes, é uma mulher gorda e ranzinza. Três dias após ser atingida pelo grande fenômeno, começou a sentir uma coceira intensa na pele, seguida de uma dor aguda e latejante; seu braço esquerdo passou a ter uma textura áspera, era uma ferida vermelha e protuberante, que foi piorando com o passar do tempo, virando quase uma lixa. Ela passou cremes e pomadas na pele, mas nada adiantou, o ferimento evoluiu e passou a expelir uma coisa pegajosa, espessa, e muito parecida com o líquido que caiu do céu dias antes.
Algumas escamas apareceram logo depois, eram verdes e viscosas, havia muitas delas em seus braços e pernas. Ela gritou de horror e medo, estava sozinha em casa e ninguém apareceu para ajudá-la, (pois o resto da cidade também estava em desespero).
Annie ficou coberta daquela nova pele como se fosse um réptil humanoide. Estaria ela virando uma cobra? Talvez fosse um jacaré, ou até mesmo um lagarto, quem poderia saber?
E em toda a cidade coisas semelhantes (e igualmente bizarras) estavam acontecendo; a estátua da santa Candelária desapareceu misteriosamente e nunca mais foi encontrada, ninguém poderia ter pegado ela, já que a cidade inteira estava convalescente; uma mulher, sem motivo aparente, começou a cortar e comer o próprio cabelo, até ficar completamente engasgada, ela morreu sufocada e foi encontrada morte três dias depois; Um homem passou a expelir o líquido das estrelas sempre que usava o banheiro, em seus excrementos havia apenas aquela água expressa e gelatinosa, ele morreu não muito tempo depois; O prefeito Ludovico ficou completamente maluco, e fazia questão de demonstrar sua loucura para todos na cidade verem. Certo dia, ele chegou na praça e apresentou um verdadeiro show de aberrações, primeiro ele vomitou, depois comeu o próprio vômito e voltou a vomitar, num ato bizarro de regurgitação, ele fez isso repetidas vezes até desmaiar de exaustão;
Aquele líquido foi originado em outros mundos, chegou com as estrelas e agora estava sendo propagado na terra. Primeiro ele contaminou as pessoas, enlouqueceu a metade delas, e os que restaram estavam virando verdadeiras aberrações. Depois, foi descendo pelos córregos da cidade; seguindo caminhos na floresta; aglomerando-se, propagando e difundindo, criando pequenas poças, lagos e lamaçais. Era uma "água" divina (se podemos chamar assim), que com certeza tinha propriedades mágicas para além da nossa imaginação; e a cidade estava inteiramente contaminada por ela.
2) Ametista dá um mergulho.
Ela esteve fazendo muitas andanças naquela floresta. Fazia caminhadas intensas pelas trilhas do manguezal, que eram até bonitas, mas estavam abandonadas e a vegetação havia coberto grande parte do caminho. Para ela não tem a menor importância, qualquer lugar era melhor que ficar em sua casa. Ela queria, na verdade, ficar o mais longe possível da cidade.
Castelo Branco estava repleta de monstros e aberrações, eram os moradores, que haviam se transformado naquelas "coisas" bizarras, mas isso não muda o fato de que a cidade estava assustadora e mórbida. Havia um cheiro acre em toda parte, misturado com um pouco de decomposição. Era o cheiro da morte, e Ametista detesta profundamente aquele odor de putrefação.
Para ela, as consequências de ser atingida pela "chuva" não foram tão devastadoras, apesar da dor insuportável que sentiu, houveram apenas mudanças sutis em seu corpo; seus olhos, que antes eram azuis, agora tinham uma coloração verde pérola, continuavam muito bonitos e ela podia jurar que agora estava enxergando bem melhor que antes. Seus cabelos loiros foram ficando ralos e caíram bastante, mas ainda sobrara o suficiente para fazer um coque tradicional que disfarçava bem as falhas no couro cabeludo.
Ametista continuava sendo uma menina muito bonita.
Ela estava seguindo pela trilha e aproveitando cada minuto da expedição. Carregava uma pequena mochila, onde levava algumas frutas e uma garrafa d'água (uma água que, milagrosamente não foi contaminada); e também algumas peças de roupas, caso aconteça algo e ela precise trocar aquela que estava usando. Estava numa parte bastante afastada de Castelo Branco. Ficaria ali até o entardecer, pois gostava de ficar sozinha, longe de toda aquela tumba mortuária que a cidade se transformou.
Estando tão longe, ela certamente não encontraria nenhuma daquelas criaturas bizarras que tinha aos montes na cidade, ela assim desejava.
Chegou até uma elevação pantanosa, repleta de muita vegetação e lodo verde. Havia um grande rio por perto, talvez fosse um riacho ou cachoeira, pois podia ouvir o barulho característico de água em movimento. Seria um bom lugar para descansar, mas Ametista não poderia chegar perto, pois toda a água da região estava contaminada pela "chuva" das estrelas, e ela não queria virar uma daquelas aberrações.
Ela procurou onde estava o riacho, o barulho dele estava bastante alto agora. Subiu uma colina, adentrou numa parte bastante pantanosa e foi andando; afastando as folhagens que estavam pelo caminho, pisando em muitas pedras, até encontrou algumas teias de aranha, que evitou ao máximo chegar muito perto. Demorou, mas ela finalmente chegou ao local do riacho.
Era outra elevação, ela estava em cima de uma enorme pedra, coberta de lodo e muito limo. Logo abaixo ficava a cachoeira, era forte e muito intensa, a água caia em enorme quantidade, jorrava das pedras com muito impulso. Daquela altura, Ametista não conseguia enxergar a margem do rio, a vegetação do pantanal estava em toda parte e cobria inteiramente sua borda. A folhagem projetava muita sombra e impedia que a luz do sol alcançasse a parte mais funda, fazendo com que o abismo fosse extremamente escuro. Ametista podia ver apenas a fumaça que a cachoeira expelia quando a água atingia a borda do riacho. Era assustador, mas também muito fascinante. Ela sabia que toda aquela água também estava contaminada pela "chuva" — se alguém mergulhar nessa cachoeira, certamente vai virar uma das aberrações.
Pensar nisso fez ela sentir um forte frio na barriga, seguido de um arrepio intenso e alucinante. Ela estava literalmente na ponta do abismo, brincando na cara do perigo.
Sentou-se na grande pedra, com as pernas cruzadas. Pegou em sua mochila duas maçãs e a garrafa d'água, faria um lanche enquanto apreciaria a beleza exótica do pântano, independente de qualquer coisa, aquele lugar era muito bonito. Logo chegaria o pôr do sol, e ela não queria perder nenhum detalhe.
Momentos depois, após ficar um bom tempo apenas observando a paisagem, Ametista acabou dormindo. Ela estava deitada na pedra gelada, protegida do sol, e regada pela sombra projetada pela vegetação; o lugar era muito confortável e perfeito para tirar uma soneca.
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Houve uma movimentação repentina na folhagem do pântano, um chacoalhar violento, seguido de um arrastar de braços e pernas na areia. Era um barulho característico da floresta, significa que alguém está chegando na surdina, como um predador. Se Ametista estivesse acordada ela correria imediatamente.
Mas não era um predador, e sim uma das criaturas, que emergiu das árvores repentinamente e aproximou-se da grande pedra, onde Ametista continuava adormecida.
Era um homem-peixe, que já estava bem próximo à Ametista e se aproximava cada vez mais. Sua pele era extremamente escamosa e escaldada, em tom de verde e azul. Seus olhos eram da cor do mar e havia guelras em cada lado de seu pescoço. Ele respirava ofegante e esforçadamente, seus pulmões de homem ainda funcionavam, mas suas guelras de peixe também precisavam respirar, mas fora d'água é impossível.
Ele estava chegando, fazendo barulho, galhos estavam sendo partidos, pedras sendo chutadas; folhas se movendo, terra e areia sendo "pisadas"; Ametista percebeu que tinha algo errado, ouviu o barulho e acordou assustada, percebeu logo que alguém vinha em sua direção, olhou em volta procurando quem ou quê estava chegando perto. Ela então viu o homem-peixe aproximando-se dela com rapidez, ela tentou se esquivar, mas não tinha para onde correr. Estava bem na ponta da grande pedra, mais um passo, e ela daria um mergulho no riacho.
O riacho contaminado com o "líquido" das estrelas.
— Não se aproxime. Você é uma das criaturas... Não chegue perto de mim! — Ela disse, tentou parecer corajosa, mas havia medo e nervosismo em sua voz.
O homem-peixe parou, estava logo a frente dela. Ele a encarou durante um bom tempo, e disse, com uma voz fanha e anasalada;
— Menina... não vejo outras pessoas há muito, muito tempo...
— Não se aproxime, eu já disse! O que você quer comigo?
— Ah, fique tranquila, eu não vou te machucar, só quero a sua ajuda...
Então ele avançou, arrastando suas escamas de peixe pelo chão, pois não podia andar. Mas era bem rápido, e quando chegou perto de Ametista, ele saltou, deu um repentino, porém forte, impulso, e a golpeou com sua cauda, acertando ela em cheio e a derrubando da grande pedra.
Ametista foi derrubada, caiu em direção as águas contaminadas do riacho. Deu apenas um grito de socorro e desapareceu no abismo. O homem–peixe foi logo atrás, saltou da pedra e também mergulhou; fez isso com a destreza de um profissional.
3) O Flash
Seu corpo foi inundado pelas águas da cachoeira. Mas ali também havia o líquido das estrelas, aquele conteúdo pastoso que queimava na pele. E ametista sentiu uma dor enorme crescendo pelo corpo, a queimando e a consumindo. Era uma dor aguda, cortante, ela gritaria se pudesse, mas não podia, pois, estava imersa nas águas do riacho.
Houve um flash branco em sua visão, seguido de uma sensação de "deja-vu" muito grande; ela já esteve imersa em águas perigosas antes, foi no dia das estrelas, quando todos na cidade foram alvejados e ficaram agonizando durante várias horas.
Aconteceu como uma visão, ou um sonho muito real; ela se viu novamente parada na praça da cidade, seus amigos, Matias e Melissa, estavam a seu lado, olhando para o céu, pois queriam ver as estrelas caindo. Ametista olhou em volta e viu que todos na cidade faziam o mesmo; era aquele dia novamente, o dia do fenômeno.
— Mas que droga é essa? — ela disse. Matias olhou para ela e abriu a boca, talvez para perguntar do que ela está falando, mas não deu tempo, pois a visão se dissipou, como um sonho que acaba repentinamente e não tem um final.
De repente, ela sentiu que seus pulmões iriam explodir, pois, ela ainda estava no fundo do riacho e não podia respirar. A mão do homem-peixe agarrou seu braço e a puxou para fora da água, com uma força descomunal. Ametista demorou para recobrar os sentidos, sua visão estava completamente apagada, mas foi voltando gradualmente, quando finalmente ela pôde enxergar, observou que o homem-peixe estava de joelhos a sua frente, dando pequenos tapinhas em sua bochecha;
— Ei, menina, acorda! — ele disse, com sua voz fanha e anasalada — eu preciso que você me diga o que você viu. Você tem que me dizer tudo!
— Eu... eu não... — ela tentou dizer, mas ainda estava muito confusa — Você... foi o maluco que me jogou naquele rio... tire as mãos de mim!
— Joguei, sim, mas foi por uma boa causa, acredite em mim.
— Ora! Tire suas mãos de mim — ela deu um tapa na mão dele e tentou se levantar, mas caiu de bunda no chão, pois ainda estava em choque por causa da queda no riacho — Mas que droga! Porque você fez isso? Eu poderia ter morrido, sabia? Você poderia ter me matado!
— Já disse que fiz isso por uma boa causa.
— E qual causa foi essa? — Ela disse, olhando nos olhos do homem-peixe, estava genuinamente irritada.
— Difícil explicar, mas vou tentar; todas às vezes que alguém mergulha neste rio, há um flash enorme e o mundo fica coberto de branco, seguido de uma visão do passado, uma visão de quando houve a chuva das estrelas. Aconteceu comigo, várias vezes, e espero que tenha acontecido com você também.
— Eu, eu vi alguma coisa, sim! — ela disse, tentando não parecer tão confusa quanto realmente estava — Meus amigos e eu estávamos parados na praça da cidade, esperando as estrelas caírem, e..., e então acabou.
— Sim, então não é só comigo... — agora o homem-peixe a encarava, com intensa curiosidade.
— Ora, seu cara de peixe, mas o que tem isso a ver?
— Me chamo Rafael! — disse, com certa irritação na voz — Não é óbvio? O que nós tivemos não foi uma visão comum, e sim um vislumbre do passado. Uma projeção do dia das estrelas. Sim! Esse riacho é um portal para o passado. Uma dobra no tempo.
— Como isso pode ser possível? — Ametista perguntou, pois, agora estava mais confusa do que nunca.
— O líquido que caiu do céu, no dia das estrelas, está por toda parte, inclusive nas águas desse riacho. Ele tem propriedades mágicas, sabe? Transformou-me em peixe — Rafael fez uma pausa — e vai transformar você também!
— Por sua culpa, seu imbecil, você me jogou na porra desse riacho — Ametista quase gritou, estava irritada e assustada mediante a possibilidade de virar uma das aberrações da cidade — eu te odeio!
E novamente o homem-peixe disse:
— Foi por uma boa causa!
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Rafael explicou seu plano detalhadamente, e Ametista escutou com bastante atenção. Dizendo "hum!", "aham", e "sei" esporadicamente.
— Você entendeu? Tudo o que eu fizer enquanto estiver submerso no rio e tendo aquele vislumbre do passado, vai alterar diretamente nosso presente (que também pode ser considerado nosso futuro), mas eu não consigo fazer isso sozinho, preciso da sua ajuda, menina.
— Eu... eu entendi — ela disse — mas o que você quer que eu faça?
— Eu quero avisar a todos na cidade para saírem da praça antes de serem alvejados por aquela maldita "chuva", vou gritar para que se escondam nas casas, nas colinas, onde for possível. Dessa forma vamos evitar que todos virem aberrações e acabar com esse pesadelo antes que ele comece. Eu tentei fazer isso outras vezes, mas não consegui, sozinho eu não consigo.
— O que eu preciso fazer?
— É muito simples, quando eu fico muito tempo no passado, perco a noção do tempo, meu lado peixe não é dominante, então eu não consigo ficar embaixo d'água mais do que três minutos. Da última vez que tentei fazer isso sozinho eu comecei a sufocar, engoli muita água, desmaiei e quase morri — Rafael olhou para ela, para ter certeza de que ela está prestando atenção — Eu preciso que você me tire da água se depois de três minutos eu não sair sozinho.
— E você consegue ir até o passado todas às vezes que mergulha nesse riacho?
— Sim, todas às vezes! — Rafael olhou pensativo para o riacho, como se estivesse vendo ele pela primeira vez — cada mergulho é um flash!
— Se você diz que pode acabar com esse pesadelo, eu vou te ajudar — Ametista levantou-se e percebeu estar coberta pelo líquido espesso e gelatinoso — Do contrário, vou acabar virando uma aberração igual a você, cara de peixe!
4) Uma Volta ao Passado
Rafael arrastou-se na direção do riacho e mergulhou com avidez, seu corpo de peixe recebeu bem aquelas águas, e ele pôde nadar com uma destreza admirável. Ametista ficou observando, parada na borda do riacho, estava com muita curiosidade para saber o que iria acontecer.
Aquelas águas não eram comuns, tinha uma consistência gelatinosa e um movimento lento e arrastado. As ondas criadas pelo impulso da cachoeira eram pesadas e muito densas, a pressão no fundo, devia ser enorme. Esse era o efeito do líquido, claro, o riacho foi contaminado por ele. Não é de se estranhar que Rafael não tenha conseguido respirar quando, anteriormente, tentou visualizar o passado. Aquelas águas não eram comuns, qualquer pessoa sufocará se ficar mais de dois minutos submerso nesse riacho.
Passaram-se três minutos e Rafael ainda não deu sinal de vida. Estava submerso por completo e Ametista pensou que fosse melhor tirá-lo da água antes que o pior aconteça; aconteceu que, houve um clarão na paisagem, um flash, seguido de uma corrente elétrica muito forte, que passou por Ametista e foi seguindo na direção das árvores. A água passou a movimentar-se muito rápido, muito forte. E ela pôde ver uma miragem no fundo do rio, era clara e bastante difusa "como em um sonho!", Ametista estava vendo a praça de Castelo Branco, e as pessoas estavam correndo desesperadas, como formigas em um formigueiro. Mas a chuva das estrelas ainda não tinha caído, as pessoas estavam correndo por outro motivo. Então ela viu que Rafael estava sinalizando para que todos corram para longe dali, ele gritava e até empurrava algumas pessoas. Ele realmente estava avisando a todos que o perigo iminente estava por vir.
— Aquilo está acontecendo de novo! — pensou Ametista — é mesmo real! Ele consegue alterar o passado.
E então o corpo de Rafael submergiu do rio, ele estava com os braços e pernas abertos, como se estivesse morto. As guelras viradas para baixo, mas ele parecia não estar respirando. Ametista ficou desesperada, sem saber o que fazer; ela foi na direção do riacho e pulou na água, nadando com rapidez, usando toda a força que tinha nos braços e pernas, é difícil nadar, pois, a densidade da água é muito forte. Não é leve ou fluida, quase parece uma gelatina aguada.
Quando alcançou o corpo de Rafael ela o puxou com toda força, na direção da terra, precisava tirá-lo da água antes que morresse por falta de oxigênio.
Houve outro clarão na água, e a visão do passado que Ametista estava tendo a pouco tempo atrás simplesmente desapareceu. Houve uma quebra de conexão, assim que ela tocou no corpo de Rafael.
Foi difícil nadar, ela quase não conseguiu, mas quando estava chegando perto da borda a correnteza empurrou eles para fora da água e Ametista foi carregando o corpo de Rafael até terra firme. Ele ficou um bom tempo desacordado, mas ela fez respiração boca a boca e fez pressão em sua barriga para ele expelir a água que havia engolido. E num impulso exasperado, ele vomitou, um líquido espesso e fedorento, seguido de muitas tosses rasgantes. Ametista respirou aliviada.
— Ah, droga, eu pensei que você fosse morrer — Ela falou, ainda ofegante pelo esforço que havia feito.
— Eu… eu não consegui — Rafael disse, com muito esforço, pois ainda era difícil respirar — Eu estava gritando para que todos saíssem da praça antes que as estrelas chegassem, eu gritei e empurrei muita gente, mas fui perdendo os sentidos. Ficou difícil respirar e eu acabei desmaiando.
— Sim, eu vi tudo, poxa — ela estava extasiada — Você realmente consegue ir até o passado. Até aquele dia infernal! É impressionante!
— Todos que mergulham nesse riacho conseguem, você também fez o mesmo quando caiu na água, não se lembra?
— Sim, lembro. Mas durou tão pouco, só alguns segundos. Você ficou quase três minutos!
— Meu lado peixe me permite ficar submerso mais tempo, mas ainda sim, é muito difícil respirar. Se você não estivesse aqui para me tirar da água, eu estaria morto agora.
— Ora, eu não deixaria você para morrer, isso é loucura.
— Mas foi tudo em vão, eu não consegui avisar a todos. Quando eu começo a gritar algumas pessoas pensam que eu sou maluco. Elas não acreditam em mim e dizem que é melhor eu calar a boca. Ah, que droga!
— Sinto muito.
— E quando elas estavam começando a acreditar em mim, você me tirou da água e a visão se dissipou. Não deu tempo de avisar todo mundo, certamente eles foram alvejados pelas estrelas.
— Porque não tenta falar comigo? Falar com minha versão do passado? Eu tenho certeza que acreditarei em você. Pode apostar! — Ametista estava um pouco eufórica — Naquele dia, eu estava com uma sensação ruim de que algo de errado iria acontecer, se você me contar tudo e disser para sair correndo da praça, eu e meus amigos acreditaremos em você.
— Sim, mas para encontrar você eu precisarei de mais tempo. Três minutos não serão suficientes.
— Faça um esforço! É importante que você consiga tirar todo mundo da praça antes que as estrelas cheguem. Isso vai salvar a todos. Ora se vai!
— Tudo bem! Eu vou fazer outra tentativa, farei o possível, menina, eu prometo!
5) O Veredito
Passaram-se dez minutos. Rafael aproveitou esse tempo para recobrar as forças, respirar bastante e pensar no que faria quando chegasse novamente ao passado. Ametista lhe explicou que ela e seus amigos estavam bem na entrada da praça, onde não havia tantas pessoas. Se ele os encontrasse, conseguiria ajuda e, provavelmente, conseguiria evacuar o lugar antes das estrelas chegarem.
— É um plano danado de bom, menina. Mas lembre-se que eu preciso ficar mais tempo dessa vez, não me tire da água até eu ter conseguido avisar todo mundo, está bem?
— Tudo bem, cara de peixe, como você quiser. Mas se eu ver que você não está conseguindo respirar, eu pulo na água e tiro você, não importa o que você diga!
— Está bem, menina — Rafael disse, dando um sorriso de gratidão — Te vejo do outro lado.
Novamente ele foi se arrastando até a borda da água e pulou, até que foi engolido pelo riacho. Ametista ficou apenas observando tudo, de guarda, estava extremamente receosa com o que podia acontecer; ela podia sentir que dessa vez seria diferente.
Após um tempo, o corpo dele ficou visível na borda, e o rio se iluminou por completo, outro flash, seguido de mais uma daquelas ondas de energia; estava acontecendo novamente, Rafael estava tendo uma visão do passado.
Ametista pôde ver com clareza a imagem da praça sendo projetada na água, as pessoas paradas, aguardando para ver o fenômeno; e então, repentinamente, houve um pequeno tumulto, gente andando de um lado para o outro, Rafael estava novamente gritando e apontando, dizendo para as pessoas saírem dali bem rápido, pois algo muito ruim estava prestes a acontecer.
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Para Rafael, aquilo era como um sonho lúcido, ele estaca adormecido no fundo do rio, e "sonhando" com o dia das estrelas, o dia que choveu ácido do céu.
Ele estava normal, não era um homem-peixe, e sim apenas o velho Rafael de sempre. Viu muitas pessoas paradas, rindo e conversando, outras estavam nas barraquinhas de feira, comendo qualquer coisa e batendo papo. Mas a maioria estava em frente ao palanque de Ludovico, onde o prefeito faria um discurso de campanha.
Ele apressou-se e continuou a berrar para fugirem o mais rápido possível, pois o fim estava bem próximo — FUJAM! VIRÁ UMA GRANDE TEMPESTADE, AS ESTRELAS VIRÃO, E COM ELA VIRÁ A CHUVA...
Um homem lhe acertou um murro na boca, que o fez cair com tudo no chão.
— Pare com isso seu idiota, se souber o que é bom pra você — o homem disse — Você está assustando as pessoas.
Rafael pouco ligou. Levantou-se num pulo, empurrou com força o homem e continuou a berrar
— VOCÊS PRECISAM ME ESCUTAR! NÃO TENHO MUITO TEMPO, A CHUVA VIRÁ COM AS ESTRELAS, ELA TRARÁ DOR, MUITA DOR, PARA TODOS VOCÊS...
O homem empurrou Rafael com força, e ele caiu de cara no chão. Rafael avançou sobre ele, e começou uma briga de braços; as pessoas começaram a ficar amedrontadas, queriam ver o que estava acontecendo, e então criou-se uma pequena confusão na praça da cidade.
Passaram-se dois minutos, o tempo estava acabando. Rafael tratou logo de acabar com aquela briga, pois ela não levaria a nada.
Ele deu um murro no homem, derrubou ele no chão e correu para longe, até um ponto onde não havia tantas pessoas, deparou-se com um grupo de três jovens e reconheceu um deles; era uma menina muito bonita, de cabelos loiros, que ouvia atentamente o que Rafael estava tentando lhe dizer, ele contava em desespero o que estava por vir. A menina pareceu confusa, mas havia algo em seus olhos que pareceu acreditar no que o homem estava dizendo.
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— Essa sou eu, Oh Deus! — Ametista disse — ele me encontrou!
Ametista observava tudo com bastante atenção, era incrível reviver aquele momento, pela imagem espalhada de um riacho, era mágico e assustador. Ela estava maravilhada, mas não podia esquecer que precisava tirar Rafael da água antes que ele morra afogado.
— Um peixe morrer afogado, isso é hilário "hahahah"
E então ela viu que de fato as pessoas estavam correndo para longe da praça. Ela viu Matias e Melissa dizendo para outras pessoas correrem também. Ametista (sua versão do passado) estava ajudando uma senhora a sair do meio da multidão, e Rafael continuava a gritar a plenos pulmões que todos precisavam fugir dali; o corpo de Rafael emergiu das águas, novamente com o rosto e o tronco virados para baixo, os braços boiavam preguiçosamente, como se estivessem mortos, Rafael estava novamente sufocando; Ametista correu e pulou na água, mas não avançou completamente, ela parou e refletiu por alguns segundos;
— E se não der tempo? E se ele não conseguir avisar todo mundo? — Ela pensou — E se ele fracassar como das outras vezes?
Ficou parada durante um bom tempo, apenas observando o corpo de Rafael, que mais parecia de um moribundo, e também a imagem no fundo do rio, da multidão que corria apressadamente para longe da praça, e achou que fosse melhor esperar um pouco mais, para que todos corram para o mais longe possível daquele lugar.
Ela esperou; dois minutos se passaram, Rafael parecia um cadáver boiando na água do rio, ele já não estava respirando; a visão do passado agora atingiu uma coloração soturna, pois as estrelas estavam chegando, e com elas a chuva, que atingiria a cidade com toda magnitude de seu poder. Agora, ela não podia ver nem Rafael, e nem seus amigos, eles já estavam bem longe do campo de visão.
Ametista achou que já passou tempo suficiente, Rafael certamente morreria se ficasse mais tempo na água. Ela nadou na direção do corpo, com muito esforço, batendo braços e pernas, e quando o alcançou, tratou logo de virá-lo para cima, para que ele possa respirar; assim que Ametista tocou o corpo de Rafael, houve um clarão enorme que cobriu o pântano por completo, seguido de uma enorme corrente elétrica, ondas magnéticas que passavam pelo ar e percorriam por toda parte, era a própria realidade mudando-se e tomando nova forma.
Ametista arrastou Rafael para fora da água, esse exercício lhe custou uma dor intensa nos dois braços, e também uma câimbra enorme nas costas, mas ela conseguiu, o arrastou até o chão moscoso do pântano, rezando a Deus para que ele ainda estivesse vivo. Mas ele não respirava. Estava gelado igual a um cadáver. Ametista fez pressão em seu peito, tentou fazer um exercício de respiração, mas nada adiantou.
Ele faleceu.
Ela ficou extremamente abalada, olhou em volta em desespero, pois não sabia o que fazer, ficou tão chocada que quase não percebeu nas inúmeras mudanças na fisionomia de Rafael, aconteceu repentinamente, num piscar de olhos; suas guelras desapareceram, suas pernas deixaram de ter calda e passaram a ser mais humanas. E sua pele não era mais escamosa como antes. Rafael deixou de ser o homem-peixe.
Afinal, ele (num passado distante e remoto) conseguiu correr para longe antes de ser atingido pela chuva das estrelas. Carregou consigo um enorme grupo de pessoas que também correram para bem longe, algumas correram por terem acreditado nele, já outras correram pois foram afetadas pelo efeito manada, e começaram a correr porque viram que outras pessoas também estavam correndo, seja como for, Rafael conseguiu cumprir seu objetivo. Ele conseguiu!
Aquele mundo foi-se dissipando, e Ametista se viu desaparecendo, virando fumaça, seu corpo astral estava correndo pelo ar como uma folha de outono, na direção da cidade, para onde ela estaria numa realidade bem diferente da que ela conhecia; uma realidade onde ela jamais foi atingida pela chuva das estrelas.
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6) Coisas estranhas acontecem em Castelo Branco;
Uma enorme corrente elétrica atingiu a cidade com força suficiente para causar um curto-circuito em todos os postes de energia, com ela, veio um clarão branco, O FLASH, que saiu das águas do riacho e foi seguindo na direção das criaturas, que sentiram um enorme alívio ao serem atingidas por ele.
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