Elizabeth tinha em seu colo uma longa linha de costura, do tipo mais grosso, e também uma agulha grande e de fácil manuseio. Apesar de suas mãos já não funcionarem mais como antigamente, ela não poderia deixar de fazer seu trabalho de maneira exímia e dedicada. Na sua idade, ser costureira não é nada fácil, o início de uma artrite estava ameaçando corroer os dedos da mão direita, e ela estava começando a sentir as primeiras contrações do parto que seria essa doença pelo resto de seus dias, mas ela prometeu a si mesma que só iria parar de trabalhar quando chegasse a óbito. Essa senhora tem 89 anos, uma idade avançada que a deixa orgulhosa, pois nesse mundão de meu Deus, nem todos conseguem viver tanto tempo e manter-se lucido para continuar trabalhando. Mas Beth vive sozinha, e continuar trabalhando é sua única opção, desse modo, ela se mantém lucida na medida do possível.
Os pacotes chegavam em sua casa esporadicamente, o carteiro que conhecia as dificuldades que ela enfrenta e recebeu permissão para tal, fazia a gentileza de deixá-los em sua porta e não na caixa de correios que fica na calçada da rua, assim Beth não precisa caminhar até a rua para receber suas encomendas, uma pessoa que está prestes a completar 90 primaveras, quanto menos ela se locomover seria melhor. Os pacotes em sua maioria eram bem leves e compactos, neles continham camisas, ternos, vestidos e roupinhas de bebê, todos eles precisavam de algum remendo ou conserto e Elizabeth sempre sabia exatamente o que deveria fazer, mesmo sem conversar com a cliente em questão, sua experiência a fez especialista em encontrar os defeitos nas roupas alheias e seus clientes, que já eram de estimação, lhe tinham uma enorme confiança de que o trabalho seria feito corretamente. Mas também havia muito trabalho seu sendo feito a destinatários anônimos, que souberam de seu trabalho por indicação de outros clientes. Ela faz o que precisa ser feito, dessa forma, seu problema de não a impede de fazer seu trabalho.
Naquela tarde quente de outono, já pronta para começar a costura de algumas peças infantis que chegaram há dois dias, percebeu que ainda tinham pacotes para serem abertos, chegaram naquela manhã e estavam esquecidos no sofá. Um dos pacotes chamou sua atenção, por ser bem maior que o habitual e apresentava um formato difuso. Observou que aquilo não poderia ser nenhuma peça de roupa, nem mesmo um daqueles cobertores grandes que vês ou outra lhe mandavam devido a um remendo que precisava ser feito. Elizabeth não fazia ideia do que poderia ser. Decerto que sua curiosidade falou mais alto, ela deixou de lado as roupinhas de bebê que havia planejado para aquela tarde, levantou-se com muito esforço, bufando, pesada e preguiçosa, era uma senhora gorda e seu enorme traseiro às vezes mais parecia um fardo a ser carregado, como Sísifo que foi condenado a carregar uma enorme pedra até o topo da montanha, por toda a eternidade. O alívio de Beth é que ela não teria de carregar esse seu fardo por toda a eternidade, já estava velha e cansada. Azar o de Sísifo, sorte de Beth.
Foi em direção aos pacotes e pegou aquele maior e de formato alastrado.
Ficou algum tempo olhando para ele de um jeito desconfiado, mas estava também repleta de fascínio. Sentiu com os dedos que a coisa era quase tão dura como pedra, e possuía uma forma corpórea, não se parecia com nada que ela já tivesse recebido em todos esses anos trabalhando na área da costura.
Suas mãos deslizaram pelo volume e percebeu ser bastante resistente, estava coberto de fitas adesivas e plástico bolha. Seja lá quem enviou aquilo para ela, essa pessoa foi muito caprichosa, estava muito bem embalado. Ela o levou para sua cadeira de balanço, pois o pacote já estava pesando em suas mãos, além do mais, precisava sentar-se para relaxar os músculos das pernas. Houve um solavanco quando Elizabeth depositou o corpo pesado na cadeira, ao passo que tomou um baita susto quando escutou com muita clareza um barulho metálico, de maquinaria, vindo diretamente do pacote, como se algo lá dentro estivesse vivo.
Sua curiosidade, agora, estava maior que nunca, ''o que farei com isso?'' ''O que precisa ser costurado?'' Ela não sabia responder, primeiro, teria que abrir o pacote e dar uma olhada.
Usou a tesoura de costura para cortar a embalagem. Foi difícil, pois a fita adesiva que o prendia já estava velha e quanto mais tempo ela estiver grudada no pacote, maior será sua resistência. Mas seus dedos habilidosos sabem muito bem resolver esse tipo de problema, ela fez um movimento contrário com as mãos, prendendo a parte inferior da fita no dedo indicador, com força, para deixá-la exposta, e usou a tesoura para cortar tudo que fosse necessário. Cortou, rasgou e puxou. Seus dedos cansados ficaram doloridos, mas ela conseguiu libertar aquilo que estava guardado no pacote.
De início ela não entendeu, nem mesmo reconheceu o que poderia ser aquilo. Há muito tempo ela não via uma dessas, a última vez, teria sido na sua infância, que aconteceu há tantas décadas que ela mal conseguia se lembrar. É uma boneca de corda, mas não do tipo comum, é mais pesada que o normal. Elizabeth supôs que havia alguma maquinaria pelo lado de dentro da boneca, lembrou-se do barulho metálico que ela escutou ao sentar-se na cadeira de balanço. O rosto é feito de pano, um tipo grosso e de boa qualidade, mas estava sujo pelas ações do tempo, não era muito grande e não possuía muita mobilidade, a boneca ficava sempre sentava, olhando para frente. Sua boca estava entreaberta, expondo um sorriso permanente e simpático no rosto.
Mas uma coisa, mais do que todas as outras, chamou a atenção de Elizabeth, a boneca tinha uma gravura no pescoço, estava escrito seu nome “Aritana”, e ela segurava com as duas mãos uma plaquinha com os dizeres: “Conte-me uma mentira e eu te digo uma verdade”.
Elizabeth, sempre confusa e curiosa, tentou entender o que exatamente deveria fazer com aquela coisa, certamente sem sucesso. Mas ela teve uma ideia clara de como funciona essa dinâmica, pois em sua infância havia visto algumas bonecas como essa, puxando a corda que estava nas costas da Aritana, iria ativar a maquinaria dentro dela e algo mágico iria acontecer.
Ela pode ser velha, mas não é senil. Beth sabe que não iria acontecer nada de mágico. É apenas uma tecnologia simplória, mais antiga que andar para frente, mas uma coisa é certa, uma boneca dessas, nós tempos áureos, custava uma fortuna e hoje em dia é provável ser item de colecionador. Aritana continua sendo muito cara. Mas afinal, o que ela deveria fazer? Aparentemente não havia nenhuma parte em Aritana que necessitava ser consertado ou costurado, ela só está muito suja e maltrapilha. Exceto pelo vestido azul da boneca, que de tão velho, parecia que iria se desfazer em farelos a qualquer momento.
Só podia ser isso, então. Elizabeth presumiu que ela deveria fazer outra roupa para Aritana, uma nova e mais resistente. Era isso o que a pessoa (aquela que enviou esse pacote) desejava que Beth fizesse.
Ela assim o faria, mas primeiro precisava testar esse brinquedo de corda, pois aquele era o mais complexo que já esteve assim em suas mãos durante toda sua longa vida. Essas bonecas eram bem caras e Beth nunca tivera acesso. Aritana pedia para Beth contar-lhe uma mentira e em troca ela lhe contaria uma verdade. Dinâmica simples, por mais que atípica. Supôs que Aritana não fosse um brinquedo para crianças, talvez fosse feito para jovens adultas, item de colecionador. Os dedos cansados foram na direção da corda, mas antes de puxá-la, Beth achou que era melhor dizer alguma coisa, pois era dessa forma que a boneca funcionava, uma mentira em troca de uma verdade.
— Meu nome é Elizabeth. E nos meus tempos de menina eu também fui uma “boneca”, tão bela quanto qualquer outra — Ela disse, dando uma risadinha divertida, com sua voz de velha, era rouca, cansada e um pouco fanha. Beth nunca foi muito bonita e ela sabe disso. Acabara de contar uma mentira.
Puxou a corda e novamente o barulho metálico invadiu seus tímpanos. Também havia algo tintilando lá dentro, um tique-taque parecido com o de um relógio antigo. A boca de Aritana abriu-se com dificuldade, estava inteira enferrujada e há muito não era posta para funcionar. Mas o processo, ainda que demorado, chegou ao fim, e um pedaço de papel velho apareceu na boca da boneca, expelido como se fosse uma língua de sogra. Ficou preso. Beth puxou ele usando alguma força, pois parecia que a boneca o estava mordendo, não queria soltar.
Quando finalmente conseguiu puxar o pedaço de papel, ela percebeu que nele estava escrito uma curta mensagem, com letras legíveis, mas difíceis de serem lidas, pois, o papel estava amarelo e amarronzado pelas ações do tempo. Franzindo o cenho e fazendo uma careta de concentração, ela finalmente conseguiu ler o que estava escrito:
“Seus olhos são a janela de sua alma”. Essa mensagem, por mais que fosse caricata e clichê, fazia algum sentido com a mentira que Beth havia dito anteriormente. Ela percebeu isso, pois lembrou-se de uma memória da sua infância, por mais que ela não fosse uma menina muito bonita, algumas pessoas sempre elogiavam a beleza de seus olhos. Sua mãe, por exemplo, sempre lhe dizia o quanto o brilho dos seus olhos era belo e extremamente profundo. Beth orgulhava-se muito dessa característica em sua aparência. A boneca parece que acertou precisamente a resposta.
Antes que pudesse começar seu trabalho de costura, ela precisava fazer novas perguntas, foi invadida por aquela curiosidade natural da humanidade em desbravar algo desconhecido (talvez sobrenatural) e Elizabeth estava cheia dela. Seus dedos encontraram novamente a corda nas costas de Aritana, e antes de puxá-la, Beth proferiu outra mentira.
— A curiosidade, ela não é o meu maior defeito — Ela disse, sorrindo jovialmente, fazendo um semblante malicioso, parecido com o de uma criança quando mente intencionalmente.
A corda foi puxada e novamente a maquinaria da boneca foi posta para funcionar. O barulho feito lembrou Beth algo semelhante a uma velha ferrovia, toda atrofiada e que poderia quebrar a qualquer momento, precisava certamente de alguns reparos. O som estava mais alto que da primeira vez, ela achou que sim. E após muitos tique-taques, finalmente a boca de Aritana foi aberta, os dentes ficaram expostos, só agora Beth percebeu o quanto eles eram grandes, eram feitos do mesmo material que o corpo de Aritana, um tipo de metal velho e rijo. Nesse momento, Beth novamente indagou se aquele era realmente um brinquedo infantil, talvez não fosse.
Com cautela, ela enfiou os dedos na bocarra e puxou o papel. O levou para perto dos olhos para ler a mensagem sem muita dificuldade, ela dizia:
“Todos que descobriram algo, um dia procuraram”, a frase, mesmo que um pouco confusa, dizia algo a Beth, talvez uma pequena relação com a mentira que ela havia contado anteriormente, Elizabeth é muito curiosa, sim, mas a consequência disso foi descobrir muitas coisas novas. Ela se lembra de quando era pequena, quando pela primeira vez pegou uma das linhas de costura de sua mãe para costurar o vestido de sua única boneca (das mais baratas, feita inteiramente de pano) que de tão velho estava rasgado em muitas partes. Mesmo sem saber costurar, ela conseguiu fazer alguns remendos. Ficou um trabalho horrível, mas isso foi sua porta de entrada no mundo da costura e futuramente, ela virou uma das melhores costureiras do bairro.
— Curiosidade é a chave para a descoberta, eu entendi! —
Ela disse, sentindo-se um pouco ridícula por acreditar nessa falácia. Claro que a boneca não a estava respondendo, era apenas uma série de coincidências fantásticas. Atreladas ao fato das respostas de Aritana serem todas muito genéricas, que se encaixam em diversos contextos, independente do que diga o interlocutor.
— Acontece que sempre adorei coincidências, principalmente quando são fantásticas.
Novamente, os dedos encontraram a corda da boneca. Beth se preparou para contar mais uma de suas mentiras, mas antes de fazer isso ela prometeu a si mesma que essa seria a última vez, tinha muito trabalho a fazer e não poderia ficar a tarde toda brincando de boneca, já não tinha idade para isso.
Decidiu trapacear um pouco, diria algo que nem mesmo ela sabe se é uma mentira. Poderia ser verdade, ou não, quem poderia saber?
— Eu só vou parar de costurar quando chegar minha hora de fazer a passagem. Eu digo, quando eu falecer — Ela disse, sentindo-se um pouco culpada pela trapaça, mas ainda assim ansiosa pela resposta que Aritana lhe daria.
Novamente o barulho metálico se repetiu, só que dessa vez foi ainda mais barulhento e demorado, parecia que o brinquedo finalmente estava falhando. Beth ficou com medo dele simplesmente explodir em sua mão, não ficaria surpresa se acontecesse de fato. Mas não explodiu, o tique-taque continuou tiquetaquear durante um bom tempo. Ficou impaciente, e percebeu que havia se cansado daquela brincadeira mais do que gostaria. Aritana era pesada e as coxas de Beth estavam começando a reclamar do peso, achou que teria uma noite difícil pela frente, com algumas câimbras nas pernas e a artrite ameaçando seus dedos. Era melhor que aquela prosa valesse a pena, pensou consigo mesma, u então ficaria bem zangada com sua própria estupidez.
Minutos se passaram, Beth estava quase desistindo de esperar. Mas finalmente o pedaço de papel chegou até a boca de Aritana, ela o expeliu exatamente como das outras vezes, como se ele fosse uma língua de sogra. Mas a boca dela não se abriu por completo, parecia que estava travada. Beth teria que enfiar os dedos bem no fundo, se quisesse mesmo agarrar o papel (estava quase tão velho que poderia virar farelo) sem que ele rasgue. A aparência da boneca, com a boca entreaberta e a “língua” para fora assustou um pouco Beth, não era uma imagem muito agradável, parecia um tipo esquisito de topiaria, mas feita de pano e metal. Como uma entidade feita para ser reverenciada. Mas a curiosidade falou mais alto e ela ignorou esse pensamento de estranheza referente a imagem distorcida de Aritana que se projetada em sua mente.
Enfiou os dedos na boca da boneca, com cuidado para não rasgar o papel. Tentou puxá-lo sem fazer muita força, mas não conseguiu, o papel estava preso.
Elizabeth não gostou muito da ideia de ter seus dedos dentro da bocarra de Aritana, mas não conteve o ímpeto e colocou mais dois dedos da mão esquerda, usando esses para segurar os lábios metálicos da boneca, e o papel ela tentava agarrar com os dedos da mão direita. Aquele entrevero prontamente tornou-se um trabalho árduo para uma velha, mas ela nunca teve medo de desafios como esses, afinal, trabalhou usando as mãos a vida inteira. E esse pequeno contratempo não iria impedir-lá de ter sua resposta. Sem contar que havia ficado tempo demais sentada naquela poltrona esperando que algo acontecesse, interromper a brincadeira agora seria o mesmo que admitir seu fracasso naquela tarde, nem fizera seu trabalho nas roupinhas de bebês, nem Aritana havia feito o seu trabalho. Foi uma tarde perdida.
Não percebeu que estava pressionando com muito força a mandíbula metálica da boneca, mas ela escutou quando algo lá dentro quebrou-se em dois pedaços, fazendo o papel se desprender um pouco da boca e quase soltar-se por completo. Beth tirou os dedos da mão esquerda, e com os três primeiros dedos da mão direita ela tentou puxar sua mensagem, sempre com calma, para não rasgar. Foi quando a boca da boneca cedeu por completo e se fechou entre os dedos da velha, provocando uma mordida dolorosa e letal. Os três dedos ficaram presos e Beth exclamou um grito de dor e surpresa. Ela tentou puxar para fora, mas não obteve sucesso, a boneca tinha uma mordida bastante rígida, pois seus dentes e provavelmente o resto de seu esqueleto na parte interna eram compostos principalmente por ferro e metal, por isso era tão pesada, o pano de seu rosto e seu vestido era apenas uma casca para esconder sua verdadeira faca escabrosa. E algo lá dentro estava pressionando a mandíbula metálica para baixo, transformou a dentada de Aritana em uma mordida extremamente dolorosa.
— AH! Me solte sua aberração! — Beth gritou, com bastante raiva e indignação.
Elizabeth tentou puxar os dedos magros para fora, mas sem sucesso. Boa parte da pele rasgou-se, expelindo bastante sangue e provocando certo deslizamento, mas metade deles ainda estavam dentro, presos, pois Aritana travou por completo. A dor era profunda, e seus os olhos encheram de lágrimas, Beth sentia-se burra e ridícula por estar nessa situação, mas também estava com medo, afinal, aquilo era apenas uma boneca, mas de um jeito assombroso ela a estava mordendo, e a mordida doía que só o diabo.
Ficou desorientada, não sabia mais o que fazer. As engrenagens daquela coisa quebraram e ficaram imobilizadas. Seus dedos estavam aprisionados naquela boca do inferno. Passou-lhe pela cabeça um pensamento ridículo, mas que naquele momento fazia muito sentido, ela trapaceou ao fazer aquela ultima pergunta e agora estava sendo castigada por isso. Aritana a estava castigando.
Elizabeth não tinha mais interesse no papel, pois já tivera sua resposta, ao pensar em como seus dedos foram esmagados pelos dentes de Aritana, machucados e ensanguentados. Pensou em como aquela ferida iria doer pelo resto de seus dias, Beth teve a certeza de que jamais iria costurar novamente.
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