A Máquina Que Faz Pensar – Conto

Tang
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1) Passa da meia-noite, a noite estava fria e escura lá fora.

Elisa, em sua casa, preparou a sala de estar para iniciar o ritual de comunicação. Era algo estranho e assustador, mas se funcionasse, seria incrível e um alento para seu coração.

Ela posicionou uma televisão antiga bem no centro e a plugou na tomada. Em seguida, fechou todas as cortinas e trancou todas as portas da casa. Precisava estar no mais absoluto silêncio, e principalmente, precisava estar sozinha, para realizar com sucesso a chamada "transcomunicação instrumental".

– Apenas um jeito complicado de dizer que vou falar com meu filho morto – Disse ela, sentindo um arrepio profundo na espinha ao ouvir o som da própria voz.

Pela primeira vez em muito tempo, lembrou-se que não estava totalmente sozinha. Sentado no sofá, todo esparramado, estava o pequeno Kevin, seu filho mais novo que sofria de paralisia cerebral. Ela soube que para fazer o ritual era necessário estar sozinha em casa, mas como Kevin não podia pensar, quase não contava como sendo uma pessoa de verdade. 

Sim, ela estava (praticamente) sozinha.

2) Kevin não era filho único, seu falecido irmão gêmeo chamava-se Charlie, que não sofria de paralisia cerebral, pelo contrário, era um menino ativo e muito inteligente. O favorito de Elisa. Mas ele acabou sendo atropelado enquanto estava brincando de correr na rua, há uns dois anos, foi pego por um carro em alta velocidade e nada sobrou dele. 

Elisa sofreu muito, nunca superou essa perda. E, com muito pesar no coração, ao ver seu outro filho esparramado no sofá feito um vegetal, ela desejou que Kevin tivesse morrido naquele acidente, não Charlie.

Não que Kevin fosse de fato um vegetal, ele sabia fazer algumas coisas, às vezes se levantava e perambulava pela casa. Um pouco andando, um pouco se arrastando. 
Mas sempre com muita dificuldade. Ele não podia falar, mas se comunicava através de gestos e sons, poucas coisas, mas que para ele representavam grandes avanços.

– Bom garoto – disse ela, caminhando na direção na televisão velha, torcendo para que tudo dê certo – Não se assuste Kevin, seu irmão vem para dizer "oi".

Kevin não respondeu, talvez não tenha entendido, mas alguma coisa em seu olhar dizia que havia preocupação em sua mente, talvez fosse medo, ou às duas coisas.

– Que mente? Você não pode pensar, esqueceu?

Ela cruzou as pernas e sentou-se de  frente para a televisão. A luz vermelha no monitor indicava que ela ainda estava funcionando, bastava apenas apertar o botão de ligar; Elisa assim o fez, e a tela se iluminou, enchendo a sala de luz. 
Estava passando um filme antigo de terror, sobre uma mulher velha e uma boneca de corda, que lhe oferecia verdades em troca de mentiras. Alguma coisa assim. Elisa não tinha interesse naquilo. Ela puxou o cabo da antena atrás do monitor, fazendo a tela se apagar, sobrando apenas a estática tradicional de televisores antigos iguais aquele.

O barulho chiado e irritante invadiu a sala. Elisa diminuiu o volume, deixando quase no mínimo.

Os chuviscos invadiam por completo, eram pretos, brancos e cinzas, parecendo pequenos fantasmas que iam e vinham. A tela apagava-se rapidamente e depois voltava, inúmeras vezes. Kevin se mexeu no sofá, coisa rara, mas aquilo provavelmente o estava assustando, o deixando inquieto, e Elisa não percebeu, pois estava pronta para começar o ritual.

3) A coisa funciona de maneira simples. Teoricamente, você irá se comunicar com alguém de seu interesse, através da televisão. Ela pode te responder com imagens distorcidas, ou com sons de programas antigos, mesmo estando sem o cabo da antena. A estática pode mudar e distorcer, de maneira não natural, e você saberá que algo de estranho está acontecendo.

– Charlie, você pode me ouvir? – Ela perguntou, com a voz rouca e acanhada, pois ela também estava um pouco assustada – Charlie, a mamãe está aqui! Eu preciso que você fale comigo, nem que seja só uma vez!

Nada de mais aconteceu. O televisor continuou repleto de estática, o mesmo de sempre.

– Filho. Siga o som da minha voz. Venha até aqui! – Ela estava chorando agora, de maneira cansada e morosa, pois já havia chorado muito desde que Charlie falecera.

4) Kevin, a sua maneira simples, estava bastante incomodado com o que sua mãe estava fazendo. Claro, ele não entedia esse sentimento, mas ele estava ali, em sua mente e principalmente em seu coração. 

Sua mãe estava chorando de novo, ela faz isso sempre, e ela não gostava nem um pouco de vê-la assim.
Ela estava com a cabeça baixa, cobrindo os olhos com as mãos, e não viu uma estranha silhueta formar-se na televisão, entre tantas estáticas, algo humanoide apareceu e tomou conta da tela, foi apenas um segundo, mas Kevin percebeu. Ele percebeu.

5) Durante um longo tempo, Elisa ficou parada ali, vez ou outra fazendo perguntas, mas sempre chamado por Charlie. Às vezes ela tinha a sensação de enxergar algo formando-se na tela da televisão, mas algo lhe dizia que era apenas coisa da sua cabeça. Ela só estava vendo, porque queria ver, apenas isso.

Kevin, inquieto, sabia muito bem que algo estava acontecendo, ele só não sabia exatamente o quê. Sentia uma energia estranha na casa. Algo elétrico, metálico. A televisão ligada, em meio a sala totalmente escura, estava fazendo com que o ambiente ficasse extremamente assustador, quase medonho. Elisa parecia não perceber, parecia que ela estava catatônica enquanto fazia aquelas perguntas idiotas para a televisão.

Kevin, mesmo sendo incapaz de pensar, tinha muito mais humanidade que Elisa, ele sentia tudo. Percebia tudo. Ela, não percebia nada. 

"Afinal de contas, qual de nós dois é a mente pensante da casa?", Esse pensamento quase se formou na mente de Kevin. Mas se perdeu, assim como todas as outras coisas, seu cérebro não conseguiu processar essa informação, e ele o esqueceu poucos segundos depois.

Percebeu novamente uma silhueta se formando, agora com um pouco mais de nitidez, mas foi tão rápido quanto da primeira vez. 

Elisa também pareceu perceber, ela tomou um susto e quase se levantou. Mas continuou sentada, com um olhar confuso e assustado, ela devia estar se perguntando se imaginou aquilo, ou se de fato viu um menino aparecendo na tela da televisão.

Talvez não tenha visto nada, de novo era sua mente lhe pregando peças. 

Ela olhou para Kevin e sentiu vontade de  perguntar se ele também viu alguma coisa. Mas ela não fez a pergunta, pois sabia que o menino não saberia lhe responder qualquer coisa que seja.

– Porque estou insistindo nisso, afinal? – Ela se perguntou, sentindo-se ridícula e um pouco burra.

Mas ela sabia o porquê, e Kevin também sabia.

Havia uma energia muito forte na casa, que Elisa não pôde perceber no início, mas que agora dava pra sentir na pele, pois os pelos do braço estavam todos arrepiados, subiam, por causa da estática da televisão, mas o estranho era que ela não estava tão perto assim para isso estar acontecendo. 

O que estava acontecendo, era que a estática invadiu toda a sala, e talvez tenha invadido a casa inteira. Dava para sentir ela invadindo o ar e tomando conta de tudo.

Finalmente, ela percebeu que se quisesse mesmo ouvir uma resposta, precisava aumentar o volume da televisão. Estava muito baixo, e não dava para ouvir muita coisa, exceto o barulho chiado irritante que tanto a incomodava. Talvez Charlie estivesse chamando por ela, mas ela não teria escutado.

– Ah, como eu sou burra! – Disse ela, sentindo-se mais ridícula do que nunca.

Agarrou o controle remoto e aumentou o volume, o suficiente para escutar caso Charlie resolvesse chamar por ela, não que ela realmente acreditasse que aquilo fosse acontecer. 

– Ah, Charlie, se você soubesse a falta que me faz! – Elisa estava quase catatônica, olhando cansada e preguiçosamente para o televisor.

O tempo passou e ela estava cansada, deitou no chão, em cima do tapete, e ficou olhando atentamente para a tela da televisão. Esperando acontecer algo, mas nada aconteceu. Até que seus olhos foram ficando cansados, pesados, turvos, e depois de algum tempo, ela adormeceu

6) Kevin não adormeceu, pelo contrário, ficou acordado observando a televisão, de alguma forma ele sabia que algo estava acontecendo. Sentiu o que sua mãe foi incapaz de sentir, e ele sabia, no fundo de sua mente danificada, ele sabia que algo mais iria acontecer.

Até que uma voz saiu da televisão e invadiu a sala. Um sussurro baixo, para Elisa não escutar. A silhueta estava novamente enchendo a tela, era claramente a forma de um menino, que dançava conforme os chuviscos iam e vinham.

– Kevin..., – Era uma voz metálica, elétrica, impossível explicar, mas também havia algo de semelhante naquela voz, pois era Charlie quem estava falando, de algum lugar, dentro da televisão. 

– Kevin, venha até aqui! Sou eu, Charlie... Venha!

Kevin se mexeu, seu corpo estava totalmente esparramado no sofá, pois há muito tempo ele não trocava de posição. Com esforço, ele deslizou pelas almofadas e foi até o chão, se arrastando daquele jeito que Elisa odiava. E Kevin sabia que ela odiava, mas agora ela não podia vê-lo se arrastando daquele forma, pois ela estava dormindo.

Ele não sabia direito a diferença entre os braços e as pernas, então os usava da mesma forma para se locomover, de maneira totalmente desengonçada, mas eficiente. Demorou um pouco, mas ele chegou até o centro da sala, onde estava a televisão.

Sua mãe estava deitada logo atrás, agora dormindo mais profundamente.

– Não acorde ela, Kevin. Deixe-a dormir. Não é com ela que eu quero falar. É com você! – Disse Charlie, ainda falando baixo, mas a voz era firme e clara.

Kevin pela primeira vez na vida não teve dificuldade de entender algo, pelo contrário, com certa clareza, ele sabia exatamente o que seu falecido irmão estava tentando dizer.

– Sim, você consegue me entender. É assim que funciona do outro lado, lá ninguém tem problema de cabeça. Nossa mãe abriu uma conexão entre aqui e lá... Mas temos que ter cuidado para não quebrar a conexão, entendeu?

Kevin moveu a cabeça duas vezes. Ele entendeu.

– Eu não respondi a nossa mãe porque não quero falar com ela. Ela é horrível com você, Kevin. Eu vejo tudo, eu sinto. É com você que eu quero falar...

Kevin esboçou uma expressão de curiosidade, consternação e medo. Mas ele também sentiu felicidade por estar se comunicando com seu falecido irmão, que ele muito amava, e nem pode se despedir adequadamente por não poder expressar as coisas que estava sentindo com palavras. Ser doente mental é uma merda!

Ele pensou isso tudo numa velocidade incrível. Kevin estava mais inteligente agora, mesmo que fosse temporariamente. Sim, sua mãe conseguiu abrir algum tipo de conexão para o outro lado. Como poderia ser possível?

– Não foi ela, Kevin, foi você. Você me chamou, a sua maneira. Você tem uma voz, mesmo que não saiba disso, e eu a escutei... 

Kevin, agora, sentiu-se maravilhado. Queria dizer a Charlie o quanto estava feliz, mas não podia falar. Ainda não.

– Sim, eu sei que você está feliz. É bom saber. Mas eu preciso ser breve pois não é fácil manter a conexão. Eu gostaria de libertar você dessa vida horrível que você leva, mas nada posso fazer em relação a isso – 

Dessa vez, Kevin não entendeu totalmente o que Charlie estava tentando dizer, mas prosseguiu prestando atenção, pois só o fato de se comunicar com outra pessoa era maravilhoso, ainda mais sendo seu irmão.

– Mas acontece que talvez tenha um jeito de resolvermos essa questão; eu tenho uma mente brilhante, mas não tenho um corpo. Você tem um corpo, mas é incapaz de pensar... – Disse Charlie, num tom de voz um pouco maravilhado, e um tanto amalucado – Vamos trocar! Vamos fugir juntos e deixar ela sozinha!

Kevin não compreendeu o que ela estava propondo. Mas concordou de imediato, afinal, quando estava vivo, Charlie sempre sabia o que fazer e sempre fazia a coisa certa.

– Vamos trocar Kevin! Vamos fugir! Deixar ela sozinha! Sozinha! – Era um sussurro baixo, mas indignado e muito lunático. Tinha o tom de voz infantil de Charlie, mas também tinha um barulho que vinha lá do fundo, com muito chiado. Às vezes parecia que não era só Charlie, parecia tinha mais de uma pessoa falando, em alguns momentos, parecia até que era uma multidão inteira.

Kevin se assustou, não queria mais aquela conversa. Queria fugir, para longe de Charlie, para longe da casa e para longe de sua mãe. Ele queria apenas fugir.

– Você não entendeu, eu sei. Mas você irá entender quando tudo estiver feito. Vamos trocar, e tudo ficará bem! Confia em mim, irmão.

"O que eu preciso fazer?" Kevin tentou perguntar, mas esse pensamento nem mesmo se formou em sua mente, foi apenas um resquício de dúvida que logo se perdeu. Mas ainda sim, Charlie captou a pergunta, como uma antena parabólica faz com um sinal de TV

– Apenas toque na tela, eu faço o resto!

E então ele tocou a tela da televisão, e todos os chuviscos, todos os "fantasmas", se voltaram para a palma da mão de Kevin, atraídos pela estática, que agora estava muito mais forte. A energia de Charlie invadiu suas mãos, atraídos como um verdadeiro ímã, e Kevin foi absorvendo aquela energia sem querer, sem ter a menor intenção de fazer aquilo, todo seu corpo ficou repleto de um choque elétrico muito forte, que não era doloroso, mas coçava e queimava bastante.

Kevin/Charlie, os dois irmãos dividindo o mesmo corpo, levantaram-se num susto e colocaram as mãos sobre o rosto, fazendo uma careta de dor e surpresa. Charlie tentou gritar, mas Kevin nunca havia feito isso antes, então eles tiveram dificuldade em expressar a dor que estavam sentindo. Mas após um bom tempo, finalmente o grito saiu, bem alto e alucinado, que deve ter acordado a vizinhança inteira.

7) Houve uma invasão elétrica muito forte na casa, capaz de arrepiar todos os fios de cabelo do corpo. Elisa, que ainda estava estonteada de sono, percebeu de supetão que havia algo de muito errado acontecendo, pois uma estranha criatura estava gritando e pulando na sala de estar, logo a sua frente.

Ela acordou e tentou não gritar, mas foi inevitável, pois no início pensou que algum ladrão entrara na casa. O garoto pulava e gritava, com as mãos cobrindo os olhos, e seu corpo inteiro estava tremendo, como se estivesse levando um tremendo choque.

– Mas o que é isso? – Ela tentou gritar, mas sua voz falhou, tamanha era sua surpresa – Kevin, é você?

Ela estava confusa e desorientada, estava vendo Kevin pulando como um atleta profissional, logo ele, que mal sabia limpar a própria bunda.

– Eu não entendo... Como pode ser isso?

– Mamãe? Ah, mamãe, meu rosto está queimando, queimando!

– Você está falando? – Elisa achou que podia estar sonhando, talvez, ainda estivesse dormindo, afinal – Kevin, o que está acontecendo?

O garoto parou de pular, e encarou Elisa com lágrimas nos olhos, estava sentindo dor no corpo todo, seus dedos tremiam muito, tamanha era a corrente elétrica em seu sangue.

– Não sou Kevin, mamãe. Sou Charlie!

Ela ficou em choque, não conseguiu dizer nada, apenas ficou boquiaberta.

– Eu estava no tempo. Na eternidade. Lá é branco, e infinito.

Elisa ficou estasiada. Sentiu um misto de medo e fascínio. Mal acreditou no que estava vendo.

– Você... Você é Kevin. Charlie? Está no corpo do Kevin? Funcionou! Eu nem posso acreditar que funcionou. Ah!

– A mente de Kevin é um papel em branco, eu a preenchi com meu desenho!

Ela não entendeu exatamente o que aquilo queria dizer, mas não deu importância. Seguindo seu impulso maternal, tudo o que ela queria era dar um abraço apertado em Charlie, mesmo que aquele fosse o corpo de Kevin.

Ela correu na direção do menino, que ficou parado esperando para receber seu acolhimento materno, mesmo que sua mãe fosse uma mulher desprezível, Charlie ficou com pena do desespero e da carência que viu naqueles olhos cheios de lágrimas.

8) Mas, no meio do caminho, Elisa tropeçou na tomada da televisão, e de súbito, a energia foi cortada, a conexão foi interrompida e uma enorme onda de energia saiu do corpo de Charlie e expandiu por toda a casa. Houve um feixe de luz sendo cortado. E um barulho baixo de vidro quebrado, parecido com o de uma lâmpada quando explode; 

Charlie foi desligado, e Kevin desmaiou.

Elisa demorou para entender o que foi que aconteceu, talvez ela nunca entenda. Desorientada, confusa e sonolenta, a única coisa que ela viu foi Kevin desacordado no chão da sala, e a televisão desligada. Nem sinal de Charlie, nem sinal de Kevin.

Naquele momento, ela estava sem os dois filhos.

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