6) Kevin não adormeceu, pelo contrário, ficou acordado observando a televisão, de alguma forma ele sabia que algo estava acontecendo. Sentiu o que sua mãe foi incapaz de sentir, e ele sabia, no fundo de sua mente danificada, ele sabia que algo mais iria acontecer.
Até que uma voz saiu da televisão e invadiu a sala. Um sussurro baixo, para Elisa não escutar. A silhueta estava novamente enchendo a tela, era claramente a forma de um menino, que dançava conforme os chuviscos iam e vinham.
– Kevin..., – Era uma voz metálica, elétrica, impossível explicar, mas também havia algo de semelhante naquela voz, pois era Charlie quem estava falando, de algum lugar, dentro da televisão.
– Kevin, venha até aqui! Sou eu, Charlie... Venha!
Kevin se mexeu, seu corpo estava totalmente esparramado no sofá, pois há muito tempo ele não trocava de posição. Com esforço, ele deslizou pelas almofadas e foi até o chão, se arrastando daquele jeito que Elisa odiava. E Kevin sabia que ela odiava, mas agora ela não podia vê-lo se arrastando daquele forma, pois ela estava dormindo.
Ele não sabia direito a diferença entre os braços e as pernas, então os usava da mesma forma para se locomover, de maneira totalmente desengonçada, mas eficiente. Demorou um pouco, mas ele chegou até o centro da sala, onde estava a televisão.
Sua mãe estava deitada logo atrás, agora dormindo mais profundamente.
– Não acorde ela, Kevin. Deixe-a dormir. Não é com ela que eu quero falar. É com você! – Disse Charlie, ainda falando baixo, mas a voz era firme e clara.
Kevin pela primeira vez na vida não teve dificuldade de entender algo, pelo contrário, com certa clareza, ele sabia exatamente o que seu falecido irmão estava tentando dizer.
– Sim, você consegue me entender. É assim que funciona do outro lado, lá ninguém tem problema de cabeça. Nossa mãe abriu uma conexão entre aqui e lá... Mas temos que ter cuidado para não quebrar a conexão, entendeu?
Kevin moveu a cabeça duas vezes. Ele entendeu.
– Eu não respondi a nossa mãe porque não quero falar com ela. Ela é horrível com você, Kevin. Eu vejo tudo, eu sinto. É com você que eu quero falar...
Kevin esboçou uma expressão de curiosidade, consternação e medo. Mas ele também sentiu felicidade por estar se comunicando com seu falecido irmão, que ele muito amava, e nem pode se despedir adequadamente por não poder expressar as coisas que estava sentindo com palavras. Ser doente mental é uma merda!
Ele pensou isso tudo numa velocidade incrível. Kevin estava mais inteligente agora, mesmo que fosse temporariamente. Sim, sua mãe conseguiu abrir algum tipo de conexão para o outro lado. Como poderia ser possível?
– Não foi ela, Kevin, foi você. Você me chamou, a sua maneira. Você tem uma voz, mesmo que não saiba disso, e eu a escutei...
Kevin, agora, sentiu-se maravilhado. Queria dizer a Charlie o quanto estava feliz, mas não podia falar. Ainda não.
– Sim, eu sei que você está feliz. É bom saber. Mas eu preciso ser breve pois não é fácil manter a conexão. Eu gostaria de libertar você dessa vida horrível que você leva, mas nada posso fazer em relação a isso –
Dessa vez, Kevin não entendeu totalmente o que Charlie estava tentando dizer, mas prosseguiu prestando atenção, pois só o fato de se comunicar com outra pessoa era maravilhoso, ainda mais sendo seu irmão.
– Mas acontece que talvez tenha um jeito de resolvermos essa questão; eu tenho uma mente brilhante, mas não tenho um corpo. Você tem um corpo, mas é incapaz de pensar... – Disse Charlie, num tom de voz um pouco maravilhado, e um tanto amalucado – Vamos trocar! Vamos fugir juntos e deixar ela sozinha!
Kevin não compreendeu o que ela estava propondo. Mas concordou de imediato, afinal, quando estava vivo, Charlie sempre sabia o que fazer e sempre fazia a coisa certa.
– Vamos trocar Kevin! Vamos fugir! Deixar ela sozinha! Sozinha! – Era um sussurro baixo, mas indignado e muito lunático. Tinha o tom de voz infantil de Charlie, mas também tinha um barulho que vinha lá do fundo, com muito chiado. Às vezes parecia que não era só Charlie, parecia tinha mais de uma pessoa falando, em alguns momentos, parecia até que era uma multidão inteira.
Kevin se assustou, não queria mais aquela conversa. Queria fugir, para longe de Charlie, para longe da casa e para longe de sua mãe. Ele queria apenas fugir.
– Você não entendeu, eu sei. Mas você irá entender quando tudo estiver feito. Vamos trocar, e tudo ficará bem! Confia em mim, irmão.
"O que eu preciso fazer?" Kevin tentou perguntar, mas esse pensamento nem mesmo se formou em sua mente, foi apenas um resquício de dúvida que logo se perdeu. Mas ainda sim, Charlie captou a pergunta, como uma antena parabólica faz com um sinal de TV
– Apenas toque na tela, eu faço o resto!
E então ele tocou a tela da televisão, e todos os chuviscos, todos os "fantasmas", se voltaram para a palma da mão de Kevin, atraídos pela estática, que agora estava muito mais forte. A energia de Charlie invadiu suas mãos, atraídos como um verdadeiro ímã, e Kevin foi absorvendo aquela energia sem querer, sem ter a menor intenção de fazer aquilo, todo seu corpo ficou repleto de um choque elétrico muito forte, que não era doloroso, mas coçava e queimava bastante.
Kevin/Charlie, os dois irmãos dividindo o mesmo corpo, levantaram-se num susto e colocaram as mãos sobre o rosto, fazendo uma careta de dor e surpresa. Charlie tentou gritar, mas Kevin nunca havia feito isso antes, então eles tiveram dificuldade em expressar a dor que estavam sentindo. Mas após um bom tempo, finalmente o grito saiu, bem alto e alucinado, que deve ter acordado a vizinhança inteira.
7) Houve uma invasão elétrica muito forte na casa, capaz de arrepiar todos os fios de cabelo do corpo. Elisa, que ainda estava estonteada de sono, percebeu de supetão que havia algo de muito errado acontecendo, pois uma estranha criatura estava gritando e pulando na sala de estar, logo a sua frente.
Ela acordou e tentou não gritar, mas foi inevitável, pois no início pensou que algum ladrão entrara na casa. O garoto pulava e gritava, com as mãos cobrindo os olhos, e seu corpo inteiro estava tremendo, como se estivesse levando um tremendo choque.
– Mas o que é isso? – Ela tentou gritar, mas sua voz falhou, tamanha era sua surpresa – Kevin, é você?
Ela estava confusa e desorientada, estava vendo Kevin pulando como um atleta profissional, logo ele, que mal sabia limpar a própria bunda.
– Eu não entendo... Como pode ser isso?
– Mamãe? Ah, mamãe, meu rosto está queimando, queimando!
– Você está falando? – Elisa achou que podia estar sonhando, talvez, ainda estivesse dormindo, afinal – Kevin, o que está acontecendo?
O garoto parou de pular, e encarou Elisa com lágrimas nos olhos, estava sentindo dor no corpo todo, seus dedos tremiam muito, tamanha era a corrente elétrica em seu sangue.
– Não sou Kevin, mamãe. Sou Charlie!
Ela ficou em choque, não conseguiu dizer nada, apenas ficou boquiaberta.
– Eu estava no tempo. Na eternidade. Lá é branco, e infinito.
Elisa ficou estasiada. Sentiu um misto de medo e fascínio. Mal acreditou no que estava vendo.
– Você... Você é Kevin. Charlie? Está no corpo do Kevin? Funcionou! Eu nem posso acreditar que funcionou. Ah!
– A mente de Kevin é um papel em branco, eu a preenchi com meu desenho!
Ela não entendeu exatamente o que aquilo queria dizer, mas não deu importância. Seguindo seu impulso maternal, tudo o que ela queria era dar um abraço apertado em Charlie, mesmo que aquele fosse o corpo de Kevin.
Ela correu na direção do menino, que ficou parado esperando para receber seu acolhimento materno, mesmo que sua mãe fosse uma mulher desprezível, Charlie ficou com pena do desespero e da carência que viu naqueles olhos cheios de lágrimas.
8) Mas, no meio do caminho, Elisa tropeçou na tomada da televisão, e de súbito, a energia foi cortada, a conexão foi interrompida e uma enorme onda de energia saiu do corpo de Charlie e expandiu por toda a casa. Houve um feixe de luz sendo cortado. E um barulho baixo de vidro quebrado, parecido com o de uma lâmpada quando explode;
Charlie foi desligado, e Kevin desmaiou.
Elisa demorou para entender o que foi que aconteceu, talvez ela nunca entenda. Desorientada, confusa e sonolenta, a única coisa que ela viu foi Kevin desacordado no chão da sala, e a televisão desligada. Nem sinal de Charlie, nem sinal de Kevin.
Naquele momento, ela estava sem os dois filhos.
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