1) Em toda sua longa vida, o padre Pedro jamais escutara uma história tão maluca quanto aquela. Sua crença em Deus foi posta a prova naquele dia, coisa que ele jamais pensou que fosse acontecer.
Era 23 de outubro, o dia estava escuro e bastante soturno lá fora, fazia frio e ventava forte; o padre, particularmente, gostava muito de ver o dia assim, pois, nesse cenário, a igreja costumava ficar inteiramente vazia e silenciosa, e ele teria muito tempo de solidão para pensar com seus botões, sem que ninguém o incomode. Mas, naquele dia, a paz causada pela solitude não duraria para sempre, pois um homem alto, loiro, com uma cicatriz relativamente grande no rosto e um pouco desengonçado, bateu na porta da igreja com muita força, diversas vezes, pedindo (quase implorando) para que alguém abra e o deixe entrar, carregava uma cesta com um pequeno bebê dentro, adormecido. O padre, impaciente, assim o fez, respirando bem fundo e bufando bastante.
Quando a grande porta da igreja foi aberta, o homem loiro praticamente mergulhou dentro da paróquia. Estava abatido, cansado, respirando rápida e desesperadamente. Ele tropeçou no tapete e quase derrubou o bebê, que ainda dormia profundamente na cesta. O padre, sem entender nada, o encarou de modo confuso e questionador "mas o que esse maluco quer comigo, afinal?" Pensou ele, achando graça da situação ridícula em que o seu semelhante se encontrava.
Recompondo-se, ele decidiu perguntar logo o que estava acontecendo, para acabar com esse balaio de gato o quanto antes e assim, poderia aproveitar o resto do dia em paz.
– Mas o que é isso, meu filho? – perguntou, com sua voz rouca e cansada – Levante-se, e tome cuidado para não machucar essa criança.
– Me desculpe, padre – Disse o homem, levantando-se, ainda ofegante – Estou perdido e confuso, não sei o que fazer e nem para onde ir, então decidi que a casa do senhor seria o melhor lugar para me esconder.
– Se esconder de quê, meu filho? – O padre o encarou de modo avaliador, de cima para baixo e de baixo para cima, olhando especialmente para aquela cicatriz feia que ele tinha no rosto – Você está fugindo da polícia?
– Bem que eu queria – Ele disse, olhando para o bebê – A situação é bem mais complicada e muito mais assustadora.
Os dois trocaram olhares confusos e atônitos.
– Pelo amor de Deus, homem! Conte-me logo o que foi que aconteceu, e assim tentarei lhe ajudar.
– Vou lhe contar tudo, padre. Mas primeiro sente-se, pois é uma longa história
2) O Homem, que parecia perdido na própria irrealidade, tentou começar a contar sua história diversas vezes, mas não conseguia, pois as palavras misturavam-se e se perdiam, de maneira confusa e difusa, quase que fragmentada. Padre Pedro, já acostumado com situações desse tipo, tentou acalmá-lo da melhor maneira que pôde, sempre dizendo para ele controlar-se e respirar fundo. Pois, somente com calma e paciência que ele conseguiria dizer tudo o que estava pretendendo dizer.
Ninguém aqui estava com pressa, afinal.
O homem aproveitou para limpar a garganta, clarear as ideias e pensar direito. Posicionou a cesta com o bebê bem na sua frente, e usou os pés para balançá-la esporadicamente.
– Tenha calma, meu filho. Absolutamente nada justifica esse seu desespero. Agora conte-me o que foi que aconteceu, você disse algo sobre seu irmão, certo?
– Isso! Meu irmão... – Ele falou a palavra "irmão" como se fosse algum palavrão, desviando o olhar para o chão como se estivesse com medo e vergonha – Eu me chamo Nicolas, meu irmão se chamava Carlos, era dois anos mais novo do que eu, mas não havia muita diferença entre nós dois, eramos muito, muito parecidos.
O "muito parecidos" foi dito duas vezes, com muita ênfase, e o padre franziu o cenho, pois sentiu que aquilo teria relativa importância naquela história.
– Quando meu irmão nasceu, minha mãe ficou maravilhada. Ela nunca gostou muito de mim, pois me julgava extremamente bronco e mal-educado, igualzinho a meu pai. E ela sempre nutriu certo desprezo pelo meu pai – havia lamentação em sua voz, e certa tristeza – Quando Carlos nasceu ela achou que ele seria diferente, mais educado e obediente do que eu jamais fui; o filho perfeito que ela tanto sonhou.
Novamente ele mexeu na cesta com o pé, a balançando mais um pouco, parecia que ele estava com medo que o bebê acordasse e, talvez, começasse a chorar.
– Mas ela estava redondamente enganada – Ele continuou – Meu irmão era tão bronco quanto eu, tão mal-educado quanto. E por mais que ela tentasse dar-lhe educação, ele não a obedecia de jeito nenhum e fazia exatamente o oposto, somente o que lhe dava na telha. Meu irmão era exatamente igual a mim, não só na aparência física, mas também na personalidade. Mesmo sendo dois anos mais novo, Carlos e eu éramos exatamente iguais. Cara de um focinho do outro.
– Meu filho, não estou entendendo onde você quer chegar – Disse o padre, olhando para o homem, para o bebê, e de volta para o homem. Aquela situação estava deveras confusa.
– Estou dizendo, padre, que meu irmão Carlos era uma cópia de mim. Gostava das mesmas coisas que eu, gostava sempre das mesmas garotas e fazia exatamente aquilo que eu fazia. Se não igual, era de modo muito parecido. Tirava as mesmas notas, ouvia as mesmas músicas e assistia aos mesmos programas de TV. E não era nada proposital ou de caso pensado, pois morávamos na mesma casa, mas não vivíamos grudados. Mas, de alguma maneira, nós sempre fazíamos as coisas de maneira muito semelhante.
– Mas isso é comum, filho. Vocês eram irmãos do mesmo pai e da mesma mãe. Irmãos costumam gostar das mesmas coisas.
Nicolas mexeu no bolso da calça a procura da sua carteira e a tirou rapidamente. Era preta, de couro, muito bonita. Dela, ele retirou uma fotografia, um pouco antiga, mas a imagem nela era nítida, uma foto de Carlos e Nicolas, lado a lado.
– Olhe para essa foto, padre, o que me diz?
Padre Pedro pegou a foto e a olhou atentamente, franzindo o cenho, tamanha foi sua surpresa.
– Santo Deus! Você dois eram gêmeos?
Nicolas deu risada, pois achou graça da enorme surpresa do padre. Totalmente compreensível, pois qualquer um diria que eles eram gêmeos.
– Não, padre. Não éramos gêmeos. Carlos era dois anos mais novo do que eu, lembra?
– Eu, eu não posso acreditar!
Os dois irmãos estavam com as mãos nos ombros um do outro. Eram exatamente da mesma altura. E apesar de estarem usando roupas diferentes, a semelhança entre eles era assustadora. Carlos e Nicolas eram loiros, altos, e um tanto abobalhados, tinham barba e uma expressão cansada e assustada no rosto. Os dois iguais, da mesma maneira. Mas o que mais chamou atenção do padre foi a cicatriz no rosto de Nicolas, e percebeu, de súbito, que Carlos tinha uma cicatriz exatamente igual, no mesmo lugar.
3) Agora, a situação estava ficando um pouco mais clara para o padre, mais ele ainda estava confuso e desorientado, tentando entender onde Nicolas estava tentando chegar, mas sem sucesso.
– Escuta filho, isso me parece um caso muito interessante de transtorno dissociativo de personalidade. Seu irmão roubou sua personalidade para si, e pensa que é você. Mas não é. O que você deve fazer é procurar um bom psiquiatra para vocês trabalharem essa questão juntos e então, resolverem da melhor maneira possível. Sinto muito, mas nada posso fazer para ajudá-los.
– Não é tão simples, padre. Está vendo essa cicatriz no meu rosto e no rosto do Carlos? Não acha estranho que nós dois tenhamos uma coisa dessas exatamente no mesmo lugar? Pois saiba que ela pertence a apenas um de nós, mas, de alguma forma, a compartilhamos como se fossemos uma só criatura. – Nicolas percebeu a descrença e o olhar perplexo do padre, notou que ele devia estar pensando em sair correndo, pois estava falando com um maluco – Para que você entenda, vou lhe contar exatamente como tudo aconteceu;
"– Nossa semelhança sempre foi assustadora e extraordinária, mas as coisas ficaram ainda piores quando nós entramos na puberdade e descobrimos os prazeres do sexo e das drogas. Eu me envolvia com muitas garotas, e Carlos parecia interessar-se por elas automaticamente. Claro, nossos desejos também eram os mesmos. Estamos falando em dividir a mesma mulher, mas, nem sempre a garota sábia que isso estava acontecendo. Nossa incrível semelhança nos permitiu criar esse tipo de situação. Às vezes transávamos com a mesma criatura, e ela nem tinha ideia.
Isso funcionou durante anos, e estávamos confortáveis em relação a isso.
Mas, acerca de alguns meses atrás, uma garota muito esquentada e muito gostosa descobriu o que estávamos fazendo e ficou furiosa. Eu a estava comendo, quando Carlos entrou no quarto sem bater na porta e a situação ficou para lá de complicada, a menina pulou da cama assustada e começou a gritar. Achou que éramos gêmeos e, de alguma maneira, percebeu (talvez tenha reconhecido as roupas de Carlos), que também havia saído com meu irmão e transado com ele, de certa forma, foi sem seu consentimento. Ela pulou na minha direção, me batendo e empurrando, Carlos a segurou tentando afastá-la, mas sem sucesso. Ela gritava algo como "Fui estuprada! Vocês me estupraram, seus escrotos!", No auge da briga, a menina pegou uma faca e apunhalou meu rosto, com muita força, provocando um corte profundo na minha face."
O padre olhou atentamente para a face de Nicolas, a cicatriz era bem feia e bastante profunda. Ele era um homem bonito, mas aquilo o deixava feio e um tanto assustador, com cara de maluco.
– Vocês dois estavam errados, não deveriam ter enganado a garota.
– Foi ideia do Carlos, padre. Eu apenas queria transar e transar, e ele parecia se contentar com as minhas sobras. Então me deixei levar...
"Enfim, fui levado para o hospital e lá foram feitos todos os procedimentos necessários para que o corte não ficasse ainda pior. Fui costurado e remendado, e fiquei relativamente bem.
Mas aconteceu algo estranho. Carlos passou a sentir uma dor latejante no próprio rosto. E ali começou a se formar uma cicatriz exatamente igual à minha, no mesmo lugar e com a mesma profundidade. Ele foi ao médico, mas ninguém soube dar-lhe uma explicação para o que estava acontecendo com ele; mas, no fundo, ele sabia, e eu também sabia. A verdade, padre, é que meu irmão é uma outra versão de mim, e o que me acontece, acontecerá a ele também."
Agora, o bebê se mexeu bastante na cesta, soltando um resmungo irritado e impaciente. Ainda estava dormindo, mas logo acordaria e provavelmente soltaria seu choro alto e latejante, um barulho que iria invadir a paróquia inteira. O padre, com aflição e desconforto, percebeu que o menino também era loiro, e seu semelhante era muito semelhante ao de Nicolas, na verdade. E instintivamente, não sabendo exatamente o porquê, procurou para ver se o rosto da criança tinha alguma cicatriz, mas não conseguiu enxergar pois o cobertor o estava cobrindo.
– A ideia de ter outra versão de mim, andando por aí, sempre me deixou cabreiro. Deve haver alguma explicação, seja científica ou religiosa. Então vim até aqui em busca dessa explicação, pois estou assustado e muito confuso. Não sei mais o que fazer, temo pelo meu futuro e pelo futuro do meu filho.
– Do que você está falando?
– há cerca de alguns meses meu irmão Carlos foi acometido por uma doença gravíssima, padre. Um câncer que atacou os pulmões e se espalhou pelo corpo todo. Está no hospital e os médicos dizem que ele não terá muito tempo de vida.
– Sinto muito, meu filho – Disse o padre, sentido genuína pena de Nicolas – Se eu entendi bem essa situação, você tem medo de que a doença do seu irmão pegue você também, não é isso? Você acredita que existe uma espécie de conexão entre você e ele...
– Não me importo se acontecer algo comigo, na verdade. A minha preocupação é que aconteça algo com meu filho. Pois, não quero que ele sofra.
E então, Nicolas estendeu a mão até a cesta e retirou a parte do cobertor que estava cobrindo o rosto do bebê, e o padre percebeu, com imenso medo e fascinação, que uma longa cicatriz estava crescendo no rosto da criança, muito semelhante à cicatriz de Nicolas e Carlos. Padre Pedro ficou boquiaberto, sem palavras.
– Santo Deus...
4) – O nome dele é Francisco – Disse Nicolas, com certo orgulho na voz – Meu (eu) menino. A garota que cortou meu rosto estava grávida. Não sabemos se ele é meu filho ou se é do Carlos. Mas isso não importa, pois somos a mesma pessoa. Ela o abandonou e o deixou para eu cuidar. Veja isso.
Nicolas pegou o menino no colo e abriu seu macacão, deixando o peito da criança completamente exposto; e ali havia uma mancha escura, relativamente grande, no local onde deveria estar somente os pulmões dele. O menino estava doente. E essa doença era o câncer, tal qual seu (eu) tio Carlos.
– Começou hoje cedo, fiquei desesperado, não sabia o que fazer nem para onde ir; está acontecendo com o meu menino o mesmo que aconteceu comigo e meu irmão Carlos. Olhe para essa cicatriz, padre, olhe para essa mancha! Francisco será outra versão de nós, igualmente mal-educado e igualmente doente.
O padre estava sem palavras. Não tinha base científica ou bíblica que pudesse explicar algo assim. Pela primeira vez, sua teoria religiosa pareceu não se aplicar em alguma situação. Percebeu, com tristeza genuína, que passou pela sua cabeça em não acreditar mais que possa existir um Deus, pois, nenhum Deus permitiria que algo hediondo assim pudesse, de fato, acontecer.
– Meu filho, eu... eu não sei o que dizer-lhe...
– Diga-me que, de alguma maneira, posso salvar meu filho. Me diga se existe alguma reza, oração ou clamor que possa curá-lo dessa anomalia. Eu sou uma aberração, padre. E isso foi passado de mim para meu irmão, e depois para meu filho – Ele baixou a voz, e falou quase num sussurro – Estou com medo, padre.
Após um longo tempo, o padre respondeu:
– Eu também, meu filho. Eu também!
Fez-se um silêncio amedrontador na paróquia, os dois homens se olhavam, aflitivos e confusos. Nicolas estava com uma vontade enorme de chorar, mas segurou o choro pois não queria fazer isso na frente do padre. E, após alguns momentos, foi Francisco quem chorou.
Postar um comentário
0Comentários