O cheiro da morte que vem do mar - Conto

Tang
By -
0

1) A história que você lerá a seguir aconteceu há muito tempo, embora, a data específica não sabemos. O que podemos fazer é utilizar de certos detalhes comportamentais para tentar descobrir em qual período da história se deu este fato. Faremos isso assim que este documento estiver pronto.

Mas antes, precisamos contextualizar alguns detalhes da narrativa, para não haver dúvidas quanto a veracidade deste documento. Estamos falando de uma fantasia da vida real. Uma mulher que, até então, só encontrávamos nos livros de ficção e mitologia. Fazendo com que sua existência seja posta a prova, mesmo que tenhamos as mais diversas evidencias de que ela, de fato, estava no local no momento que se deu o fato. E foi apenas sua presença, ainda que póstuma, que deu origem a toda aquela confusão.

2) Saulo era um homem de meia-idade, talvez estivesse gozando de seus 44 ou 45 anos. Mas é apenas uma estimativa. Sabemos que ele foi caminhando pela costa da praia totalmente desengonçado, pois, naquele momento, estava quase caindo de bêbado. Carregava consigo uma garrafa qualquer de bebida alcoólica na mão esquerda. E na outra mão, a foto de Charlene, sua única filha, que havia falecido recentemente, provavelmente aos 19 anos (apontamos ter sido após sofrer um abordo espontâneo e o útero não contrair), ela com suas belas medeixas loiras e lindos olhos azuis - azuis como o mar - deixou no coração de Saulo uma saudade que sangrava desde então. E ele bebia para tentar esquecer, mas sem muito sucesso.

Naquela manhã, fria e soturna, ele mais uma vez estava tentando ficar de porre até quanto for possível. Esperava cair desacordado no chão e dormir por pelo menos 12 horas, mas para isso, ele tinha que beber um pouco mais. E sua garrafa estava quase vazia. Foi caminhando pela praia, mas para lá do que pra cá, esperava chegar no bar de Lineu enquanto ainda podia lembrar o caminho, mas algo atravessou seu trajeto e o fez cair muito antes do que ele imaginava que fosse acontecer. 

Ele caiu, porque tropeçou em um monte de lixo. E em mais alguma coisa que ele não identificou de imediato.

Era um amontoado de lixo podre que formava uma espécie de barca de chorume, e nesse meio havia um saco preto bem grande que parecia cobrir algo bem maior embaixo daquele monte de lixo. O cheiro de peixe podre estava forte e fez as narinas de Saulo arder muito, mesmo estando bêbado igual a um porco ele pôde sentir, lá, no fundo, o cheiro do oceano invadindo seu corpo. Era o cheiro da morte. Mas não era a morte que ele estava acostumado a sentir - pois já havia sentido seu cheiro antes quando Charlene morreu - mas sim, o cheiro da morte que vem do mar, seja lá o que isso signifique, e esse cheiro o seduzia de um jeito indescritível.

3) Saulo ficou encarando durante muito tempo aquele entrevero de lixo. Mas o que ele estava encarando mesmo era a forma corpórea que estava abaixo do saco preto. Ele podia jurar que aquilo mais parecia um defunto do que qualquer outra coisa. O corpo de uma mulher, provavelmente, pois na parte do ''tronco'' se podia ver o formato dos seios, e mais abaixo havia uma tendência a ficar mais fino e definido, como cinturas finas de uma bela moça.

Impelido por uma curiosidade mórbida, ele agarrou uma parte do saco e o puxou com toda a força, a fim de saber o que de fato havia ali, se era mesmo um copo, ou se era só mais um monte de lixo. A coisa revelou-se, e para o mais puro terro que Saulo pudera sentir em sua vida, o rosto da defunta era um rosto que ele conhecia bem. Era o rosto de sua filha, Charlene, que havia falecido a pouco, e que havia sido enterrada em um cemitério bem longe daquela praia. Então, - ''como pode ser minha filha?''.

Ele não sabia. Nem queria saber. Seu primeiro impulso, após o choque, foi chorar igual a uma criança, de saudades e revolta, por vê-la sucateada daquela forma, coberta por lixo e chorume, quando Saulo havia lhe proporcionado um enterro digno a não muito tempo atrás. ''O que acontecera a Charlene, afinal?''

O homem prostrou-se sobre a mulher - Que muito se parecia com sua filha - e a abraçou com todas as forças. Sentiu seu corpo gélido e molenga, e numa mistura louca de asco e horror, ele teve a nítida sensação de estar abraçando uma completa estranha, pois, quando abraçou sua filha pela última vez, em seu caixão, ainda assim podia sentir que era a Charlene quem estava apertando em seus braços. Ainda tinha seu perfume doce de menina, mesmo que, muito de sua essência esvaiu-se, ainda era reconhecível. 

Mas agora não mais, ele estava vendo naquele rosto mórbido sua filha Charlene, um corpo abandonado e profanado. Mas sua essência era outra. Seu cheiro era outro. Cheiro de peixe e podridão, cheiro de mar que não lhe agradava muito. Mas logicamente Saulo achou que, por já estar morta há muito tempo, certamente mau cheiro era em decorrência disso, e esqueceu logo a lembrança de seu perfume, pois isso não tinha lá muita importância naquele momento. O que ele precisava fazer agora era tirar sua filha daquele lugar imundo e - novamente - enterrá-la em um lugar digno, com belas flores e um lindo caixão. Como havia feito anteriormente. E certamente teria de fazê-lo mais uma vez.

'', Pois algum infeliz a desenterrou. Profanou seu corpo e a abandonou aqui nesse lugar. Se eu pegar o desgraçado eu mato! Eu o mato!''

Ele tentou erguê-la. Mas sem sucesso, pois estava bêbado demais para erguer qualquer coisa. E aquele corpo estava incrivelmente pesado. A largou com cuidado no chão, pois estava com medo de derrubá-la. Seu afeto de pai ainda estava vivíssimo, mesmo que sua filha já não estivesse mais viva. Mas, ele precisava tirá-la daquele lugar, seu coração sangrava mais ainda de vê-la jogada naquela praia, no meio do lixo. Não podia suportar nem mais um minuto daquela visão terradora.

Virou as costas, ainda chorando, ainda indignado. E principalmente bestial. Foi cambaleando e tropeçando na direção do bar de Lineu, pois precisava de ajuda para carregar sua filha. 

- ''Carregar, de volta pra casa'' - Ele falou, sem entender direito o que queria dizer com aquilo.

4) Não sabemos o que de fato aconteceu no bar de Lineu, pois não tivemos registros desse momento. Sabe-se que, Saulo chegou gritando e chorando muito. Falando palavras desconexas. E muitos homens que estavam no local ficaram rindo e debochando de sua cara. Homens que estavam igualmente bêbados.

Porém, houve alguns que ao menos pararam para escutar o que Saulo estava tentando dizer, e entenderam que provavelmente alguém fez mal a sua filha, e que ela estava largada na costa da praia. O homem queria ajuda para tirá-la de lá.

Saulo conseguiu que três homens o seguissem até o corpo de sua filha. Lineu, o dono do bar, e mais dois clientes que estavam apenas de passagem por lá, mas que aceitaram ajudar, ao entenderem que a situação podia mesmo ser grave, e não apenas um delírio de um bêbado vadio.

5) Quando chegaram no local, Saulo foi na frente, cambaleante, e Lineu estava ao seu lado, pronto para segurá-lo se ele caísse de cara no chão. Os outros dois homens estavam logo atrás, desconfiados, pois aquilo poderia, sim, ser só uma palhaçada do velho bêbado. E se fosse isso mesmo, Saulo poderia esperar, pois levaria uma bela surra de tirar o couro. Eram eles Pietro e Cristóvão. 

Pietro era esposo de alguém. Cristóvão era filho de Alguém.

E Lineu, que também era esposo de alguém, aproximou-se do corpo para ver melhor seu rosto. Saulo era seu conhecido há muitos anos, e ele chegou a conhecer Charlene pessoalmente, portanto, poderia reconhecê-la caso fosse mesmo a menina. E tranquilizaria Saulo quando constatasse que, de fato, não era sua filha que estava ali jogada na praia, e sim, alguma mulher sem sorte muito parecida com ela.

De imediato, ele recuou, pois o cheiro era insuportável. Pior do que o cheiro da morte. Era podridão misturada com morte. Nem um pouco atraente.

Porém, quando encarou o rosto da defunta, nem acreditou no que seus olhos estavam vendo. Não era Charlene, a filha de Saulo, que de fato estava morta. Era Nora, sua esposa, que estava viva (até onde ele sabia) e que havia lhe dado um beijo de despedida assim que ele saiu de casa de manhã cedo. Ele ainda podia sentir o sabor de seus beijos em seus lábios, e naquele momento, foi uma das coisas que ele visou sentir pelo que seria a última vez.

6) Saulo assustou-se com o grito de Lineu e caiu para trás. Era um grito de revolta e pavor. 

''Ah, minha Nora! Não a minha Nora! O que fizeram com você?'' - Ele dizia. 

E Saulo não pôde entender o que estava acontecendo. Encarou o dono de bar prostrar-se sobre o corpo de Charlene, exatamente como ele havia feito quando a encontrou. Mas com uma pequena diferença, no desespero, Lineu começou a beijar seu rosto e seus lábios gélidos. Como um amante faz com sua namoradinha. E Saulo revoltou-se na mesma hora, nem mesmo quis saber se Lineu havia enlouquecido ou qualquer outra coisa, só podia estar biruta para estar fazendo uma coisa daquelas. Rapidamente levantou-se sobre seus pés e avançou na direção de Lineu e sua ''primogênita'', com bastante fúria e ciumes. Afinal, sua filha estava morta, mas Lineu a estava beijando como se ela fosse uma namoradinha qualquer. 

Desajeitado, quase caindo, Saulo chutou a cara de Lineu. Para afastá-lo do corpo de sua filha.

– Afaste-se dela, seu cretino - Disse-lhe, cerrando os dentes – Afaste-se, ou matarei você!

– Do que porra você está falando, Saulo? – Lineu disse, com voz anasalada, pois o chute de Saulo acertou seu nariz em cheio – Ela é minha esposa. É minha Nora!

– Ela é minha! Minha filha! - Saulo gritou, avançando novamente.

Os homens atracaram-se no chão. Pietro e Cristóvão correram para apartar a briga. Pietro segurou o tronco de Saulo e o puxou para trás, impedindo que ele continue a chutar Lineu. Cristóvão pulou na direção de Lineu e o empurrou para longe, com toda força.

– Parem com isso – Pietro exclamou – Parem agora!

Vocês enlouqueceram? – Foi a vez de Cristóvão indagar-se sobre toda aquela confusão.

– Ele estava beijando minha filha – Saulo estava no chão, chorando novamente – Minha filha morta. Eu não podia suportar.

– Sua filha uma porra, é minha Nora – Lineu aproximou-se novamente do cadáver. O encarando com algum afeto. Mas, confuso e desorientado – Minha querida Nora. O que fizeram com você?

7) A briga continuou. Os dois homens diziam ser os provedores principais da mulher morta. E os dois estavam lutando para tomar posse de seu corpo. Pietro tratou para que cada um deles fique em cada lado da praia, para evitar mais confusão. Embora, com tudo o que tinha acontecido até então, ele nem mesmo teve tempo de encarar o cadáver que estava jogado logo ali para quem quisesse vê-lo.

Cristóvão, porém, que havia achado a situação deveras curiosa, ficou frente a frente ao corpo da mulher para enfim ver como era seu rosto. O rosto que foi confundido com o de uma jovem menina morta e também com o de uma velha senhora, casada. Deveria ser bem comum, para justificar tanta confusão.

Chegou mais perto, e o cheiro de putrefação invadiu suas narinas quase que por completo, o incomodando profundamente. Era um cheiro de peixe podre misturado com algo doce de minerais. Era o cheiro da morte. Mas também o cheiro do mar. Aquilo o deixou fascinado.

Ao encará-la, nua e abandonada, ele ficou pensando que certamente teria acontecido algum crime nesse local. E a vítima desse crime estava bem na sua frente, no meio do lixo.

"Teria sido um estupro?", Perguntou-se. Percebendo pela primeira vez, que o saco preto, e os dejetos que estavam a volta, escondiam a parte de baixo do corpo quase que por completo, impedindo a visão de sua genitália e suas pernas. Se foi mesmo um estupro, então seria fácil descobrir, bastaria abaixar um pouco aquilo que estava cobrindo a genitália da defunta. Um pouco. Talvez.

Cristóvão olhou para os lados. Lineu estava conversando com Pietro, estava desolado e gesticulando para todos os lados, não entendia como sua esposa poderia estar morta daquela forma, já que ele a deixou em casa, em segurança; e Saulo, do outro lado, estava deitado no chão, parecendo um bêbado qualquer, porém, em seus olhos havia uma dor profunda. E muita mágoa também. Ele já havia enterrado sua filha, mas ela voltou dos mortos, ainda morta, e muito pior que dá última vez.

Abaixou-se, as mãos indo na direção da genitália, mas algo o fez olhar para cima, e encarar pela primeira vez o rosto da defunta. Era um rosto que ele conhecia muito bem.

Pois era o rosto da mulher que o colocou no mundo.

8) De longe, Lineu percebeu o que Cristóvão pretendia fazer, pois viu muito bem quando sua mão esquerda foi descendo na direção inferior do corpo, pela parte de baixo, buscando ver a genitália de sua esposa. Apesar da fúria momentânea, ele entendeu qual era sua intenção, pois também havia pensado nessa possibilidade "Ele acha que foi um estupro seguido de morte. Quer conferir se a genitália de Nora ainda está inteira".

Porém, a mão de Cristóvão parou. Cristóvão inteiro parou. E Lineu mal pôde acreditar no que acontecera em seguida, primeiro, o homem começou a tremer, parecendo que estava tendo um ataque epilético ou ataque cardíaco. Segundo, ele gritou, e chorou, e lamentou a morte de alguém, e essa dor era direcionada ao corpo de Nora. Lineu não entendeu o que estava acontecendo. E já estava mais que confuso a essa altura da situação. O episódio com Saulo já o deixou completamente tonto. 

Porém, algo o fez despertar da catatonia temporária, foi quando ele viu Cristóvão começar a arrastar o corpo de Nora pela praia. Ele estava a levando para algum lugar.

– Ei, pare com isso – Lineu gritou – Solte-a, eu pretendo chamar a polícia e descobrir exatamente o que aconteceu. E pegar o desgraçado que fez isso. Mas para isso eu preciso que o corpo fique exatamente como está! Solte-a!

Não – Cristóvão estava quase ensandecido – Eu a levarei para longe daqui. Ela tinha horror a praia. Tinha medo do oceano. Não merece morrer nesse lugar. Não merece!

– Solte-a, eu já disse!

Lineu avançou. E agarrou os braços de Cristóvão, a fim de fazê-lo soltar Nora. E Cristóvão não deixou por menos, o empurrando com força para longe.

– Tire suas mãos de mim – Ele disse – Eu tenho direito de enterrá-la em um lugar mais digno. Ela é minha mãe! É minha e não sua! – Ele disse, chorando quase igual a um bebê.

Continuou arrastando o corpo, a fim de tirá-lo daquele lugar podre que cheirava tão mal. Mas o cheiro da morte o seguia, pois era ele o responsável por tanta catinga. A catinga da morte. Mas também era a catinga do oceano.

Cheirava como peixe. E cheirava como mulher. Para Cristóvão, ela cheirava como sua mãe.

E ele a puxou. Puxou até que a parte debaixo de seu corpo ficou exposta para que os homens pudessem ver

Lineu e Cristóvão foram os primeiros a ver o fenômeno. Pietro estava perto de Saulo, e aproximou-se, pois percebeu a confusão inicial e depois o choque dos dois homens. Havia algo a mais acontecendo. E ele queria saber o que era.

Pietro também aproximou-se, e, assim como os outros dois homens, ficou imediatamente perplexo com o que estava vendo. Tão chocado que não pôde dizer uma só palavra.

9) Saulo foi o último que viu a verdade sobre a mulher cadáver. Pois até então estava deitado em um lugar mais afastado de onde tudo aconteceu. Havia desistido de lutar por sua filha naquele momento, pois os outros homens eram mais fortes e mais sóbrios do que ele. E não tinha como impedi-los de continuar com aquela loucura.

"Logo desistirão. E então eu poderei fazer o que tenho de fazer."

E parecia que isso aconteceu muito mais cedo do que ele imaginava. Pois percebeu que os três homens ficaram parados, encarando o corpo feito idiotas. Talvez tenham percebido finalmente que era Charlene, afinal. E não qualquer outra mulher. Embora, bem que isso seria uma enorme felicidade para Saulo.

Aproximou-se, e ficou lado a lado dos outros. Estava pronto para dizer-lhes que estava feliz, pois finalmente desistiram daquela loucura.

Quando finalmente entendeu o que havia causado aquela catatonia coletiva entre todos os homens. E ela também o atingiu. Pois o que estava vendo, na parte inferior do cadáver, foi o suficiente para o despertar de sua ressaca.

– Essa não é minha filha – Ele disse, em voz baixa. E, dessa vez, ficou contente quando viu que os outros homens que estavam a seu lado, concordaram com a cabeça.

Tags:

Postar um comentário

0Comentários

Postar um comentário (0)

#buttons=(Ok, Go it!) #days=(20)

Our website uses cookies to enhance your experience. Learn more
Ok, Go it!