Narizinho era uma menina bem nascida. E tinha tudo o que uma menina da sua idade poderia desejar.
Quando estava com seus pais — em São Cristóvão — ela se via cercada dos brinquedos mais legais que se tinha acesso na época, brinquedos que as crianças de classes sociais inferiores jamais poderiam comprar, mas, por alguma razão, ela nunca estava satisfeita com o que tinha. Porque nada daquilo era o que ela queria, nada daquilo era o que ela desejava.
Só havia um brinquedo que a fazia feliz — e esse foi costurado a mão pela tia Anastácia — era uma boneca de pano surrado, feita com alguns trapos velhos que Anastácia teria jogado fora, mas acabou encontrando uma serventia para eles; ela fez muitos remendos e moldou o corpo da boneca com as próprias mãos.
Um trabalho excepcional, que só Anastácia poderia ter feito.
A boneca era horrorosa, e narizinho sabia disso, mas ela não dava importância, pois tinha algo de muito especial em "Emília" que a fazia melhor e mais preciosa que qualquer outra boneca:
Emília sabe falar! A boneca criou vida, e desenvolveu a habilidade da fala, como se fosse gente.
Narizinho ficou maravilhada com sua nova boneca falante, extasiada, digamos assim. Ela sabia que coisas estranhas acontecem no sítio de vez em quando, mas isso era quase inacreditável. Ela tinha em mãos a única boneca viva do mundo.
Quando estava no sítio, Emília se tornara uma boneca travessa, gostava de pregar peças e esconder coisas. Talvez até coloque o pezinho de pano na frente de alguém que estiver passando, só para ver a pessoa cair.
Mas Emília não estava mais fazendo essas coisas; nada de brincadeiras, sussurros ou "tropeço", e nada de falar ou andar. Emília perdera a vida quando Narizinho deixou o sítio do pica pau amarelo e foi morar com seus pais, em São Cristóvão.
Narizinho sabia o que estava acontecendo com Emília — ela soube desde o primeiro momento, foi a energia do sítio que deu vida a sua boneca, foi aquela magia que fez Emília falar e andar. E agora não havia mais vida em sua boneca, Emília estava praticamente morta. Narizinho queria ouvir a voz de Emília novamente, e ela só conseguiria isso se voltasse para o sítio de sua avó o mais rápido possível.
Mas não eram férias de verão (quando ela costuma passar uma temporada com a Dona Benta) seus pais jamais permitiriam que ela fosse para o sítio logo agora que as aulas estão apenas começando.
Narizinho teria que fugir. Se ela quisesse ter sua boneca de volta (viva) ela teria que fugir para o sítio de sua avó o mais depressa possível. Porque é lá que a magia vive e as coisas acontecem.
Seus pais não iriam buscá-la, eles tinham muito medo daquele lugar, pois quando estavam por lá eles tinham pesadelos, enxergavam coisas, ouviam vozes e sussurros. Acontecem coisas estranhas na casa da dona Benta e eles sabem disso.
Narizinho iria fugir, mas ela não poderia seguir esse longo trajeto sozinha, não sem ajuda. Seria perigoso e o sítio da dona Benta é muito, muito afastado da cidade. Só uma pessoa poderia ajudá-la, e essa pessoa era o Pedrinho. Seu primo e parceiro de travessuras.
Pedrinho amava o sítio tanto quanto ela, pois ele sabe que existe magia naquele lugar. Perto de lá vive o Saci - O Demônio vermelho, e Pedrinho não perderia a oportunidade de tentar acabar com a raça dele mais uma vez. Narizinho o convidou e ele aceitou na mesma hora, eles iriam fugir juntos, sem dúvidas.
Narizinho pegou Emília e colocou na bolsa; pôs Também algumas mudas de roupas e duas maçãs.
Emília estava com a metade do corpo pra fora da bolsa, a boneca pode não estar falando nada, mas ela gosta de observar, e observa tudo.
Narizinho olhou pela janela e contemplou o breu da noite, e por alguns segundos ela sentiu uma pontada de medo em seu coração. Não era o mesmo medo que ela sentia quando estava no sítio e apareciam aquelas criaturas, na cidade era diferente, haviam homens que sequestravam crianças e as torturavam, homens que te colocavam em sacos plásticos e jogavam seu corpo no rio, apenas pelo prazer de te ver sufocando até a morte.
Isso acontecia com certa frequência, era só ligar nos noticiários para ver. Não era totalmente seguro no Sítio da dona Benta, mas a cidade grande era igualmente ou até mais perigosa.
Ela estava com medo, sim. Mas ela queria Emília de volta, e queria viver no sítio de sua avó para sempre. Narizinho teria de enfrentar a noite da cidade grande se quisesse mesmo realizar esse desejo.
Ela abriu a janela de seu quarto, carregando Emília nas costas, e saiu a caminho de Cerro Branco, a cidade onde mora Pedrinho, e de lá eles iriam para o sítio de sua avó.
Ela estava rezando baixinho, implorando para que nada de ruim aconteça durante seu trajeto.
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Já passa da meia-noite e nada de Narizinho chegar, Pedrinho que já se descabelava de tanta preocupação estava pensando em sair de sua casa para ir ao seu encontro.
Mas não seria uma boa ideia, estava tarde e a cidade de Narizinho ficava na direção oposta ao sítio da dona Benta, ir até ela seria o mesmo que andar para trás.
E quando chegasse até Narizinho é provável que já estivesse amanhecendo e seria impossível fazer o trajeto de volta; pois tanto ele quanto ela estariam cansados demais para caminhar.
Dessa forma eles jamais chegariam ao sítio de sua avó, e tudo aquilo teria sido em vão.
Pedrinho decidiu esperar um pouco mais, talvez Narizinho tenha se atrasado, talvez seus pais tenham ido dormir tarde e ela não pôde sair de casa mais cedo.
Ele iria esperar um pouco mais, logo narizinho chegaria, sim.
Ele a esperava sentando na porta de sua casa. Estava cansado, pois, tivera um dia longo, e este já estava chegando ao fim.
Passaram-se 10 minutos, e a apatia o dominou, seus olhos foram ficando pesados, cansados, turvos; ele adormeceu.
Pedrinho cochilou bem ali na frente de sua casa.
E nada de Narizinho chegar...
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