
''Sejam bem-vindos ao ''Clube da noite macabra'', hoje entrevistaremos Julio Miguel, um rapaz de 28 anos que passou por uma experiência um tanto quanto peculiar enquanto trabalhava como entregador de pizza nas ruas de São Paulo. O rapaz alega que seu relato será capaz de nos fazer acreditar na existência de outras realidades paralelas à nossa. Será mesmo verdade?''
''Julio, pode começar sua história, como tudo começou?''
1) Todas as entregas que fiz foram um diferencial para os clientes, pois faço questão de entregar em mãos todos os produtos. Isso implica em entrar nos apartamentos, subir até o andar em questão e efetuar a entrega. Coisa que os outros motoboys não o fazem por não acharem justo que eles tenham a obrigação de subir até os apartamentos, deixando seus veículos sozinhos no meio da rua, correndo o risco de serem assaltados a qualquer momento. Mas gosto de ser um ponto fora da curva nesse mercado, pois a concorrência está enorme e fazendo a entrega em mãos eu passo a ser a preferência dos clientes, que pedem para que eu faça suas entregas com exclusividade.
A história que contarei a seguir aconteceu há uns dois anos, uma época que eu fazia pelo menos quinze entregas por noite, o que rendia uma boa permuta no final da semana. Era um trabalho cansativo e um tanto perigoso, mas que ainda valia um pouco a pena. O fato de sempre fazer a entrega em mãos me proporcionou viver as mais variadas situações com clientes, sejam elas inusitadas ou não. Mas teve uma, em particular, que me marcou de verdade, algo para além da minha imaginação, que até hoje não entendo o porquê de ter acontecido, e nem sei exatamente se foi tudo real ou um sonho extremamente detalhado.
O que aconteceu foi o seguinte…
2) Era a décima entrega daquela noite, um dia atípico de quinta-feira, aproximadamente 22:10, estava um clima agradável e quente, mas com uma brisa leve do ar que refrescava um pouco. Eu estava feliz. E como todas as outras entregas, essa seria entregue em mãos, satisfazendo a vontade do cliente e aumentando ainda mais a minha permuta no final do mês. O prédio tinha aproximadamente 35 andares, ficava em um bairro nobre em São Paulo, precisei apresentar minha identidade na portaria e confirmar que havia um pedido pendente de um dos moradores para me deixarem entrar. Há muita segurança para aqueles que vivem daquele outro lado, não é mesmo?
No saguão haviam três samambaias enormes, penduradas nas paredes, bem verdinhas, minhã mãe adoraria ter uma dessas em casa, pois essas que tinham aqui era de outro tipo mais exótico e certamente mais caro. O espaço ali era enorme, quase que do tamanho do meu modesto conjugado, e aquilo era apenas a entrada. Tinham dois sofás brancos no centro, que, certamente, ninguém sentava ali para bater um papo durante as tardes, pois eram apenas parte da decoração; por mais que tenham custado muito caro e eu jamais poderia pagar pra ter um desses dentro da minha casa.
Caminhei lentamente pelo corredor estreito entre os sofás e o balcão. Não havia ninguém para me receber, então imaginei que o porteiro ou o que quer que fosse estivesse no horário de almoço. Fui na direção de um dos elevadores de serviço e pressionei o botão para a porta poder abrir-se e então…
Bom, Julio, eu imagino que obviamente você tenha entrado na caixa metálica a fim de subir alguns andares e efetuar sua entrega, não é isso?
É isso.
E como isso nos leva ao ponto primordial da história, no caso, a existência de outras realidades?
''Chegarei lá. Mas antes preciso contextualizar como tudo foi acontecendo. Primeiro, meu cliente não me deu a exatidão do andar que ele morava, apenas deixou um recado dizendo para fazer a entrega no sexto andar, mas sem qualquer menção ao número do apartamento, então eu não poderia fazer a entrega em mãos, coisa que estou acostumado a fazer desde sempre. Ele disse, com todas as letras, que eu deveria deixar a caixa na porta de entrada da escada que sobe ou desce para os apartamentos, pois alguém estaria ali para me receber; o que para mim não fazia o menor sentido, e chagando a conclusão de que ele não morava no sexto andar e sim, no quinto ou no sétimo, porque não me pediu para fazer logo a entrega onde deveria, ao invés de fazer uma exigência estapafúrdia dessas?''
''Segundo, e um pouco mais esquisito. É que, entre todos os 35 andares, não havia botão de quinto andar no elevador, apenas quarto e sexto. Esse era o único que faltava. Não entendi nada. E pensando com meus botoes, cheguei a conclusão de que meu cliente deveria morar em algum apartamento abandonado no (inexistente) quinto andar. Se ele morasse no sexto andar, me pediria para fazer a entrega em mão como qualquer cliente normal; mesma coisa com relação ao quarto e sétimo andar. O quinto andar certamente havia sido desativado por algum motivo. E por algum outro motivo, alguém ficou morando por lá, e resolveu pedir uma pizza.''
Muito instigante, Sr. Julio, mas me diga, você certamente não foi direto ao sexto andar como lhe haviam dito para fazer, não é mesmo?
''Não. Pois não vi motivos para fazer tal coisa. Seria bem mais prático ir de elevador até o quarto andar e subir as escadas até onde meu cliente se encontra, não é mesmo?''
''Foi exatamente o que fiz. Chegando no quarto andar, até então estava tudo normal. O prédio era o mesmo, com sua decoração clean e padronizada. Um silêncio quase que insuportável e a única alma viva que me apareceu foi uma velha senhora que saiu no corretor para aguar uma planta que ela tinha por ali. Me olhou de cara fechada e voltou andando para seu apartamento. Nada novo sob o sol. Sai do elevador e fui caminhando até o final do corredor, buscando a escada de emergência. O que reparei é que não haviam outros corredores, que iam para outras direções, aquele parecia de fato ser o ponto final. O que não fazia sentido, uma vez que o prédio tinha mais 31 andares para além daquele; mas relevei, pois não sou entendido de plantas ou anatomias de prédios modernos.
Cheguei a escada de emergência e comecei a subir a fim de encontrar esse tal de quinto andar. A passos largos, pois queria fazer logo essa entrega e voltar para minha casa. Pretendia inclusive relevar o pedido esquisito do meu cliente e explicar a ele o porquê de eu não ter seguido suas esquisitas exigências. Após alguns lances de escadaria, finalmente cheguei a um novo corretor, esse não seguia o padrão dos anteriores…
Então de fato existe um quinto andar?
Não exatamente.
Como assim?
3) ''Não havia um quinto andar. Pois não havia absolutamente nada. Era um vazio escuro e úmido. Caminhei lentamente pelo corredor buscando a presença de quem quer que fosse (porque a essa altura eu já estava achando aquilo tudo pra lá de estranho) e nada encontrei, nem ninguém. A minha esquerda tinham as portas que deveriam ser a entrada dos apartamentos, mas não eram portas reais, e sim apenas contornos desenhados nas paredes. Nada de janelas ou qualquer tipo de iluminação. Era um lugar morto abandonado.
Fui caminhando até o final do corredor. Um pouco desacreditado. Um pouco confuso. Não entendendo onde exatamente entrei e nem para onde estava indo. Nem sinal do meu cliente ou qualquer outro tipo de vida inteligente.
Então essa seria a realidade paralela que você alegou ter entrado anteriormente?
Não. Esse era um andar qualquer do prédio, que por algum motivo tinha sido desativado. Após entender que nada encontraria naquele local. E que o tempo estava passando de pressa, e meu cliente poderia simplesmente desistir da entrega, dei meia volta e fui novamente na direção da escadaria. Para voltar ao primeiro andar onde encontraria o elevador.
Eu poderia ter pegado o elevador ali mesmo no quinto andar. Mas isso seria impossível. Pois ali não havia entrada para o elevador. Assim como as portas, era apenas um contorno na parede.
4) Quando cheguei ao primeiro andar, lembrei-me imediatamente das instruções que me foram dadas, ir de elevador até o sexto andar e fazer a entrega em mãos. Pensando bem, era o que eu deveria ter feito desde o início; novamente entrei no elevador. Novamente a falta do botão ''5'' chamou minha atenção. Apertei o botão do sexto andar e as portas se fecharam, e a maquina começou a funcionar.
Me lembro de observar com atenção cada andar que passava pela janela de vidro do elevador, 1, 2, 3 e 4, todos exatamente iguais e comuns, um borrão que descia com certa velocidade pelos meus olhos e eu mal podia ver o que havia lá, mas de certa forma, eu sabia que tudo estava perfeitamente normal. Mas, ao passar pelo quinto andar, o que vi não foi um borrão, como os andares anteriores, o que vi foi uma escuridão abismal. Sem o menor sinal de luz. Como se fosse um lugar inexistente.
Nossos telespectadores estão confusos, Sr. Julio, o que isso significa, afinal?
Eu não sei.
Ok. Continue.
Para resumir, cheguei ao sexto andar. Tudo normal, exatamente como os quatro primeiros. Fui caminhando até o final do corredor a fim de chegar até a escadaria de emergência, pois supostamente seria ali que eu faria a entrega.
Chegando lá, tinha um rapaz me esperando. Era alto, magro, branco como cera, estava de calça jeans e usando uma blusa branca, simples. Ele tinha cabelos pretos e olheiras profundas nos olhos, como se ele estivesse sem dormir a uma semana, no mínimo.
- Você demorou - Ele disse, me encarando com aqueles olhos negros e profundos.
- Me desculpe, peguei uma rota alternativa. Mas acabei em lugar nenhum. Não encontrei você.
Nesse momento ele fez uma cara de deboche, me olhou como se eu fosse um idiota.
- Uai, eu lhe dei uma informação precisa de como exatamente você faria para me encontrar.
- Sim, mas aquilo não fazia o menor sentido.
Novamente o olhar de deboche.
- O que não faz sentido é você me deixar aqui te esperando por quase uma hora.
Eu nem me dei o trabalho de responder. Já tinha tido contato com clientes arrogantes iguais a esse e a melhor resposta nesses casos é ignorar as ofensas e ir embora logo. O que se seguiu foi exatamente o que acontece entre as relações de cliente e entregador, de modo protocolar. Ele pegou a caixa de pizza, colocou as mãos no bolso de tras da calça e me deu o dinheiro. Eu agradeci e dei por encerrada minha entrega. Deu tudo certo, afinal.
Ele deu meia volta e foi na direção das escadas. Começou a descer. Descer para o quinto andar.
O ''inexistente'' quinto andar
Sim.
E o que aconteceu?
Ele estava caminhando para aquele lugar escuro e inexistente do prédio. O lugar onde não haviam portas de apartamentos, apenas o contorno delas nas paredes. Era estranho, como se fosse lugar nenhum. Eu o segui, claro. Queria ver para onde ele estava indo. Onde exatamente ficava seu apartamento. Eu já estive lá anteriormente e não vi ele em lugar nenhum.
Ele foi descendo, com certa lentidão, e eu fui atrás, com cuidado para ele não perceber que estava sendo seguido. Descemos as escadas, um degrau de cada vez. A iluminação foi ficando cada vez mais precária, e a escuridão foi tomando conta. Chegou num ponto que eu mal podia enxergar, e via apenas a silhueta do homem que estava mais a frente. Quando finalmente terminamos o lance de escadas, a iluminação voltou por uma janela que tinha na parte de cima da escadaria. Era a iluminação prateada da lua que estava entrando por ali, por causa disso, minha sombra projetou-se mais a frente e o rapaz a viu, e ele percebeu que eu o estava seguindo o tempo todo.
Ele parou, mas não se virou para me olhar, apenas disse:
- O que você está querendo? Uma gorjeta?
- Ah, não é nada com você. Quero apenas chegar ao saguão.
- Descendo as escadas? Por que não foi de elevador como todo mundo?
- Porque estou precisando esticar as pernas, meu amigo.
- Hum - Ele falou, em tom de indiferença. E continuou andando.
Chegou até a porta do quinto andar e saiu. E eu fui logo atrás. Novamente estava entrando naquele lugar escuro e enigmático. Mas tive uma surpresa, pois agora o lugar era outro.
6) Era exatamente igual aos demais andares, Mesma decoração, apartamentos comuns, com plantas ao lado das portas e um tapete de boas-vindas na frente. Haviam janelas que permitiam a luz entrar e também havia iluminação por parte das lampadas no teto. Não era escuro. Não era úmido. Definitivamente não era aquele mesmo quinto andar que eu havia estado anteriormente.
- Mas o quê? - Falei em voz alta, e o rapaz escutou. Agora estava com as chaves em mãos para abrir a porta de seu apartamento. Ele parou e olhou para mim.
- O que foi? - Ele perguntou.
- Eu já estive aqui antes. Quando subi as escadas.
Ele não falou nada. Apenas me encarou.
- Mas o lugar não era esse.
- Você não pode subir até o quinto andar, meu amigo. Se quiser chegar no quinto andar, você precisa descer.
- Mas o que isso significa?
- Descer! - Ele falou. E abriu a porta do apartamento com as chaves. Entrou e fechou a porta, sem dizer mais nada.
E o que você fez em seguida?
Eu desci.
Você não voltou pela escadaria?
Não. Peguei o elevador por ali mesmo, e desci até o saguão. Fui para minha casa.
Bom, se aquilo era outra dimensão, significa que você ainda está dentro dela, não é isso?
É exatamente isso. Eu tentei outras vezes voltar para aquele prédio, e tentar voltar para minha dimensão original. Mas sempre que eu subia até o quinto andar, novamente encontrava aquele lugar escuro e úmido, o lugar que não existe. E sempre que eu descia do sexto andar para o quinto, eu encontrava um andar perfeitamente comum, mas que não era exatamente o meu lugar. Sempre era uma nova experiência, uma nova realidade.
Mas qual é o problema, afinal. Sr. Julio? Se as novas dimensões eram exatamente iguais as anteriores?
O problema é que não estou no meu lugar. Esse não é meu lugar. Minha casa não é minha, eu sinto que não pertenço a esse mundo. É uma tortura. Eu não estou bem, basta olhar para mim.
7) O apresentador olhou para Julio, e o que ele viu foi um rapaz alto, magro, branco como cera, estava de calça jeans e usando uma blusa branca, simples. Ele tinha cabelos pretos e olheiras profundas nos olhos, como se ele estivesse sem dormir a uma semana, no mínimo.
De fato, Sr. Julio, você não está nada bem.
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