A questão do Verbo - Conto

Tang
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"1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
2 Ele estava no princípio com Deus.
3 Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez."

No princípio, ele não sabia para onde iria, só entendia através do pouco raciocínio que lhe restou que precisava ir para algum lugar. Raciocínio ilógico, que o está ordenando a caminhar mundão afora, mas sem destino certo. E o rapaz tinha medo, pois tantos outros fizeram o mesmo e acabaram perdidos pelas ruas, sozinhos e sem condições de sobreviver dignamente; mesmo nessas condições, o rapaz percebe com certa perplexidade que esses ''outros'' continuam a viver suas vidinhas normalmente, continuam a acordar no dia seguinte como se nada de mais estivesse acontecendo, como se viver dessa forma ''flagelada'' fosse algo normal. Para ele jamais seria normal e ele jamais aceitaria essa situação. Interromper a vida, quando a vida estivesse em falta, lhe parecia o mais lógico a se fazer neste momento hipotético.
A hipótese o assunta e o arrebata, mesmo que não seja real, sua mente lhe faz acreditar nesse delírio e ele fica assustado com a possibilidade de um suposto sofrimento que poderia sim se tornar real (ou não). Mas essa tal negatividade é totalmente inútil, pois partindo do pressuposto, se tudo é passível de acontecer, as coisas boas também estão inclusas nesse ''tudo'', ''ora, rapaz, não temas a impossibilidade de ser feliz enquanto a situação for hipotética. Tenha bom ânimo, pois as chances de acontecer o contrário do que se espera são as mesmas, e quando isso acontecer a hipótese será certeza e ela jogará a seu favor''. Lei de Murphy, mas que no tribunal da vida tornou-se inconcessa.
Era o que sua mente lhe dizia, e ele, em seu profundo 'eu', custa um pouco a acreditar nessas palavras, mas sabe que, no fundo, elas são verdadeiras.
Ainda não sabendo para onde iria, ele de fato estava se preparando para ir;
Tinha consigo poucas coisas para carregar. Em toda sua vida havia conquistado um limitado número de coisas, porém, todas elas eram agradáveis. Todas elas lhe pertenciam e ele ficou feliz ao constatar a segunda ''obviedade'' que sua mente tanto insistia em fazê-lo acreditar, mas que ele se recusava terminantemente de compreender na maior parte do tempo, ''Tudo o que lhe pertence lhe faz feliz''.
Por qual razão estava buscando a felicidade em lugares que não lhe pertenciam, se dentro de sua casa havia todas as coisas que ele precisava ter para encontrá-la?
E sua casa lhe pertence.
Constatou o obvio com um sorriso no rosto, isso lhe fez feliz por alguns momentos, e poderia fazê-lo novamente feliz toda vez que ele acessasse essa memória em sua complicada'mente sã; olhou em volta, onde encontrava-se em seu quarto, não era um comodo muito grande, ms era confortável, e ali tinha como companhia seus livros, seus dois gatos e seu computador (que foi comprado depois de muita luta e trabalho duro, diga-se de passagem), o rapaz foi arrebatado por uma profunda sensação de segurança que de tão grande era quase materna. Veio como um abraço de sua mãe. — ''Mesmo que minha jornada não seja como eu espero, eu sempre posso voltar para casa'' — E seu verbo se fez verdadeiro — ''voltarei e aqui ficarei, essa é uma ótima questão a se pensar''.
Mas não convém apenas ficar em casa.
Por mais que seja uma ótima zona de conforto (por motivos que o rapaz não compreendia), ele precisava pular fora do ninho e explorar outras áreas da vida, pois é isso que todos fazem quando já estão grandes e supostamente, quando já sabem voar; — E fazem isso por quê? — não lhe cabe fazer essa pergunta, pois aqui estamos discutindo a questão do verbo e não a questão dos ''porquês''. Até porque, esse porquê eu não saberia responder.
Mas se precisava mesmo ir, o rapaz levaria consigo toda a bagagem que lhe faz feliz e que couber em sua mochila de alças pretas, sua única mochila. E desse modo, era sua favorita. Pegou um de seus livros livro, algumas mudas de roupa, uma barrinha de cereal, uma garrafa de aguá, sua carteira e seus documentos; e toda a sua fé, e isso lhe bastaria.
O princípio da jornada configura um jovem perdido em sua própria razão, pois não sabe o que está fazendo nem para onde está indo. Muito menos sabe o que fazer ou o que faria. Mas não ficou preocupado, pois jamais iria aceitar virar um dos ''outros'' e já estava acreditando que a probabilidade de acertar era a mesma de errar. E mesmo que ele errasse muito, sempre havia a opção de voltar para casa, para ficar perto de sua mãe. Lugar onde ele era feliz na maior parte do tempo, embora, ele desejasse mais, nesse momento estava indo atrás de ser plenamente feliz todo o tempo, mesmo não sabendo (e nem acreditando) que isso poderia ser de fato possível.
O dia estava nublado e havia um resquício de chuva de vento que molhava o ambiente a sua volta. Pôs os pés na rua e respirou fundo, enchendo os pulmões com ar frio e refrescante. Após uma longa pausa de reflexão, deu o primeiro passo a caminho de qualquer lugar. E logo após, deu o segundo passo. E assim ele foi caminhando até que a visão de sua casa se perdeu no horizonte atrás dele; havia uma neblina que separava os dois. E não tardou até que o rapaz também desapareceu no horizonte na direção contrária da casa.
Os dois se perderam de vista.
Seu verbo de ação naquele momento era ''caminhar''. Caminhar na direção do destino que lhe estava reservado. Com alguma ponderação ele refletia se seu destino seria feliz, desejava profundamente para que essa afirmativa fosse verdadeira, pois ele estava indo naquela direção com as próprias pernas e se não fosse verdadeira, quem mais ele poderia culpar por não estar plenamente feliz, quando chegar até seu destino e constatar que ali não mora sua felicidade?
Ninguém mais.
Enquanto estava no ninho e ali era a maior parte do tempo feliz, ele ainda poderia responsabilizar sua progenitora por sua atual condição. E ele assim o fez. Todas às vezes que se sentia infeliz por não ser plenamente feliz. E agora, buscando a felicidade sabe-se lá onde, ele assumia a responsabilidade de falhar e não a encontrar. Nesse caso a culpa seria totalmente dele, mas estava tranquilo, pois essa era a responsabilidade de todos e era o que todos faziam.
Por que fazem?
Eu não sei.
Não seria mais lógico continuar vivendo no ninho materno e sendo deveras feliz, mesmo que não totalmente feliz?
Ecoou em sua mente um pensamento conflitante à cerca da criação de tudo. Se ele continuasse vivendo no ninho de sua mãe e de seu pai eternamente, quem é que faria todas as coisas que somente ele poderia fazer?
O que ele sabia fazer era um mistério até para ele próprio, ele era bom em muitas coisas, mas nenhuma delas lhe era útil ao ponto dele continuar vivendo no ninho sem precisar sair de sua casa sem destino. Mas supondo que fosse ele a pessoa que idealizou a primeira estrada pavimentada do mundo, alguém faria esse serviço em seu lugar se ele não tivesse feito?
Talvez. Mas iria demorar muito mais tempo e isso não estaria correto, pois se o princípio é o verbo, o verbo da primeira estrada é essa pessoa. O rapaz se perguntou se essa pessoa ficou plenamente feliz quando entregou seu projeto inovador aos outros construtores e todos eles viram que era bom. Ele duvidava, pois nem de uma só estrada se fazia uma grande cidade, quem dirá um país inteiro. Havia a necessidade de fazer várias outras depois da primeira e o trabalho continuaria.
— ''Se o verbo não está na criação, onde estará?'' — Constatou que construir não é o verbo, apesar de ser um bom verbo. Ficou aliviado, pois apesar de ter muitos talentos, construir não era um deles.
Seguiu caminhando pela estrada que o levaria até a estação da cidade. O clima estava soturno e um pouco chuvoso, havia nuvens cinzas no céu e poucas pessoas caminhavam pelas ruas naquele momento. Ele gostava da paisagem que lhe cercava a cada passo, havia vegetação, embora não fosse muita já que ele morava na cidade grande. Mas o pouco que tinha era belo e verde. Isso lhe concebeu um pouco mais de felicidade, não muita, pois ele sabia que o belo e o verde acabaria assim que ele entrasse na estação, mas enquanto ela durou, ele foi feliz.
O verde acaba quando o cinza começa. A estrada invadiu o gramado e o matou. Assim nasceu essa grande cidade; para que ela exista, a floresta precisou morrer; ponderou sobre o que disse anteriormente sobre o verbo das estradas ser a ''criação'', na verdade, a verdadeira criação precisou morrer para que a estrada pudesse existir. Achou que por isso o criador das estradas não foi plenamente feliz após criá-las. Muita vida morreu para que ele pudesse ascender profissional e socialmente e achou que, no fundo, ele sabia disso.
Se a criação do homem não é o verbo, então o que mais poderia ser?
Em sua condição de homem ele só conseguiria criar ou destruir algo. Destruir não era uma opção para esse rapaz. Exceto por destruir a si próprio, mais isso também não estava sendo uma opção naquele momento, pois não era isso que ele queria fazer. Ele desejava muito ser feliz, plenamente feliz se assim fosse possível. Mas para ser feliz ele precisava descobrir qual era seu verbo. Pois o verbo estava com Deus. E sem o verbo nada do que foi feito se faria da forma como foi feita. Feita por outras pessoas que encontraram seu verbo, seja criando ou destruindo algo. Ou talvez as duas coisas, como o construtor dessas enormes estradas em cidades grandes, que destruiu tudo o que era verde para criar tudo o que é cinza.
Isso foi bom?
Não cabia ao rapaz responder essa pergunta. Era bom para a maioria das pessoas, mas para outras, não. Viver em cidade grande para ele sempre foi insuportável, nesse caso ele se encaixa nos ''outros'' da questão, mas nesse caso, ele gostava de ser assim, mesmo não se encaixando no seleto grupo dos que gostam, ele se encontrava no grupinho dos que não gostam.
Porém, ''não gostar'' ainda não é o seu verbo. Embora, grande parte de seu conflito interno parecia se basear nessa questão em específico, ele não gosta de ter que sair da casa de sua mãe, mas sabe que é preciso, pois também não poderia ficar lá para sempre. O ''não gostar'' o faz procurar seu verbo, não parece ser o X da questão, eu diria que o ''não gostar'' é o mapa onde o X foi desenhado. O papel do rapaz agora é procurar pelo mundo onde está esse X, usando esse tal mapa como bússola, assim como os piratas procuravam o tesouro em suas enormes embarcações nas histórias infantis. Onde está o tesouro. E qual seria a grande recompensa?.
Um objetivo, uma vocação, um sentimento, que de preferência seja a felicidade que ele tanto procura.
Mas também existe a remota hipótese do X não estar localizado naquele lugar específico apontado pelo mapa e assim o rapaz teria que continuar procurando. Sua recompensa seria o prazer de procurar por ela e nunca encontrar.
Todas essas respostas são válidas, mas não consigo afirmar se todas elas são verdadeiras. O rapaz, muito menos.
Ele caminhou por boa parte do trajeto perdido nesses pensamentos e quase não reparou que já estava chegando no terminal de sua cidade. Novamente avistou uma grande quantidade de gente que iam e vinham, ele sabia que boa parte dessas pessoas ainda não tinham encontrado o verbo de suas vidas. E muito provavelmente jamais encontrariam. Eles não eram como os ''outros'', pois tinham casa, trabalho e uma suposta ''vida'', mas o rapaz também não desejava ser como eles, pois eles se autoenganavam e estavam alienados, diferente dos outros que vivem a verdade do fracasso, esses vivem a mentira do fracasso. E talvez essa condição fosse ainda pior.
Sua mochila pesava um pouco nas costas, ele ainda estava decidindo se realmente iria entrar naquela estação, uma vez que nem sabia para onde estava indo. Não sabia onde queria chegar. E nem sabia se o trem realmente o levaria para algum lugar. Refletiu sobre as pessoas que iriam embarcar junto com ele, pensou e constatou — ''afinal de contas, eles pegam esse transporte todos os dias e nem por isso encontraram o verbo. Felicidade, então, nem pensar. Vejo no semblante deles que se pudessem e tivessem coragem, eles acabariam com a própria vida hoje mesmo'' — é triste, mas é a verdade, e o rapaz não achou que fosse uma boa ideia se misturar naquela multidão que se juntou na porta do trem para embarcar. Se fizesse isso, seria só mais um entre tantos que fazem a mesma coisa todos os dias e jamais encontram o que estão procurando.
Ao invés de entrar na estação e embarcar na plataforma, ele seguiu caminhando pela estrada ainda sem rumo, mas sempre andando pra frente e nunca para trás. Ainda andando, ainda procurando. Seu verbo talvez fosse ''caminhar'', sempre na direção de algo. Não desistiria enquanto não encontrasse esse algo. E nem estava cansado, era só o princípio de sua jornada. Ele até que conseguia ser feliz durante esse processo de busca. Não plenamente, mas ainda assim, feliz.
O tempo passou e já era noite, O clima estava agradável e as estrelas brilhavam no céu. O rapaz encontrava-se cercado de vegetação bela e verde, pois seguiu caminhando por uma trilha que se projetava no lado direito da estrada e o levou na direção do desconhecido. Era uma pequena floresta que havia em sua cidade e que poucas pessoas tinham coragem de adentrar por aquelas bandas, ''tenho medo de me perder'' era o que dizia a maioria das pessoas que já estavam perdidas. E como sempre, sua análise introspectiva foi contra a maré, o rapaz constatou que ali ele se encontrou.
Estava deitado em uma grande pedra, o rosto virado para cima observando o céu estrelado. Observando o infinito e o que havia além dele. Repentinamente um desejo enorme de voltar para casa lhe invadiu e o arrebatou. Queria voltar para casa para ficar perto de seu pai. Não de sua mãe, mas de seu perto pai.

O rapaz encontrou seu verbo. E o verbo assim se fez.

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