O Evangelho de Olegário — Conto

Tang
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Este conto é uma prequel de uma outra história (leitura não obrigatória), que você pode conferir a seguir: Com a palavra, o louco.


O PRIMEIRO LIVRO DE OLEGÁRIO CHAMADO:

FRUTO DE OLEGÁRIO.

ABERTURA


A semeadura da morte do homem.

1. Caminhei a passos largos a estrada fumegante da rodovia 59 de minha cidade. A principal e mais movimentada por essas bandas. Sentindo o peso de minha mochila nas costas e o vento gelado da manhã em meu rosto, tudo o que eu mais queria era dar por encerrado aquele dia de trabalho que estava prestes a começar. Como foi no dia anterior e como certamente seria no dia seguinte.

2. "E comerás o fruto de seu suor", foi esse o castigo dado ao homem pela desobediência. Desobediência que não foi minha, mas que tenho de pagar por ela; e esse tornou-se meu castigo desde que saí da casa de meu pai e tornei-me responsável por mim mesmo. Não tenho o melhor emprego, nem boa aparência. E tudo o que faço, alguém já o fez antes de mim, e fez melhor. Peço a Deus que me liberte dessa vida sem sentido. Para que minha carne tenha seu tão sonhado descanso.

3. E todos os que cruzam meu caminho, terão o destino a que lhes foi prometido. Quanto a mim, obtive o mais sincero desejo de meu coração revelado, quando cruzou meu caminho um ônibus desgovernado, pois seu freio acabara de dar defeito. Enquanto caminho rumo a meu trabalho, na faixa de pedestres, distraído com meus pensamentos, sou atingido em cheio por aquela enorme cavalgadura de ferro. Meu corpo espalhou-se por inteiro pela estrada 59, onde muitos passavam.

4. Levaram-me para o hospital. Ou pelo menos o que sobrou de mim. Fiquei intubado. Perdi uma quantidade enorme de sangue, mas meu corpo apresentou espasmos múltiplos, como se estivesse em negativa com o fato de que era chegada a hora da minha morte. Me amarraram. Espetaram-me com agulhas e aplicaram medicamentos na minha corrente sanguínea (no que sobrou do meu sangue), tudo isso numa tentativa infundada de prolongar meus dias.

5. Ouvi o som dos meus batimentos cardíacos, ilustrados no aparelho do hospital, indo e voltando, subindo e descendo. Até que desceu de vez e ali ficou. Agora, ouve-se apenas um zumbido constante e nada mais.


Aqui vem o juízo.

1. De súbito, despertei de meu sono profundo, sem mais dores ou prantos. Meu corpo estava em êxtase de sua plena boa forma. Levantei-me achando que cairia sobre meus pés, mas isso não aconteceu. Pelo contrário, naquele momento eu sentia que se desse alguns pulinhos, certamente sairia voando, como os pássaros fazem com tanta graciosidade. Nunca fui tão altivo quanto nesse momento do primeiro despertar.

2. Olhando em volta vejo uma imensidão azul, regada por belas nuvens brancas. Que passavam sendo levadas pelo vento na direção do infinito. Meu corpo estava coberto por belas vestes brancas feitas de algodão, mas era uma roupa tão leve que eu mal podia senti-la. Eu não sabia onde estava, nem o que era aquele lugar, mas com toda certeza, gostava de estar ali;

3. Avistei ao horizonte uma forma corpórea voando atrás das nuvens, vinha na minha direção, voava a toda velocidade e estava chegando cada vez mais perto. Os cabelos eram loiros, longos e cacheados. Exuberantes ao vento. Voava desviando das nuvens e indo na direção contraria a correnteza da ventania. "É um anjo!", foi a primeira coisa que vem na minha mente, mas percebo de supetão que aquela afirmação não era de todo correta, pois aquela bela criatura certamente poderia ser uma fêmea. Uma anja. Para ser mais exato. Mas era impossível afirmar com certeza. O pouco que pude ver de seu rosto revelava uma escultura delicada e feminina, mas seus ombros eram largos com os de um jogador de futebol. Seus longos cabelos revelavam a graciosidade de uma bela mulher, mas suas asas de arcanjo eram tão grandes e exuberantes que logo associei com as de um guerreiro voador.

4. Era impossível afirmar seu gênero. Não sabia se era um macho ou uma fêmea. Não tinha como saber. Mas, ao vê-la/lo voando daquela maneira, senti-me terrivelmente atraído por aquela criatura, sinto uma ereção crescer por entre minhas pernas e tento esconder com as mãos, evitando que a criatura a veja. Eu estava sentindo uma vergonha que não cabia em meu peito.

5. Quando chegou ao lugar onde eu havia despertado, trouxe consigo uma enorme rajada de vento que veio na minha direção. Tive que cobrir meu rosto, pois podia sentir o peso cortante de suas asas logo a minha frente. A criatura brilhava como o sol, quase me cegou. Tudo o que eu podia ver de seu corpo eram as cores branco e dourado.

6. E ouvi sua voz grave, nem masculina e nem feminina, dizer-me "Novo irmão. Seja bem-vindo a sua verdadeira morada. Tenho um recado de nosso PAI para você!". Estendeu a mão direita para mim, e com suas asas batendo levemente veio voando na minha direção, como se estivesse me convidando para voar também juntinho a ele/ela, e eu prontamente estendi minha mão, pois tudo o que eu mais queria naquele momento era juntar-me com aquela criatura celestial. Juntar nossa carne para sermos um só;

7. Antes que pudéssemos nos tocar algo de errado aconteceu, a criatura repentinamente encolheu suas asas, retirou sua mão e a guardou no peito. Olhou-me como se eu fosse a coisa mais desprezível que já viu em toda sua existência. E eu enxerguei isso em seu rosto, pois seu brilho que era semelhante ao sol havia se apagado, ficando apenas uma pequena faísca.

8. "Está consumado", falou-me, mas dessa vez sua voz estava mais feminina e menos potente "Foi um engano. Você não deveria estar aqui!". E após dizer-me essas palavras, saiu de supetão e foi voando na direção contraria a mim, voando para longe como se estivesse fugindo de uma doença contagiosa.

9. Eu estava envergonhado. Mas sem estender o motivo. Quando percebo, horrorizado, que minha ereção estava totalmente aparente sob a veste branca de algodão. A roupa era quase transparente. E quem estivesse por perto veria tudo o que eu estava "escondendo" ali embaixo.

10. Tive uma visão de dor e desespero. Senti uma pressão enorme em meu peito, que nesse momento parecia que iria explodir. E por um breve momento aquela imensidão azul tornou-se vermelha. Vermelha como o inferno.

11. O chão sob meus pés eram nuvens brancas que se moviam com a ajuda do vento. Até então eu não tinha reparado nesse detalhe. Porém, meus pés não estavam sentindo mais a firmeza do chão, comecei a descer como se estivesse pisando em fumaça. 

12. E de repente cai no abismo quando o chão já não existia sob meus pés, eram apenas nuvens comuns que não podiam mais suportar meu peso. Minha visão ficou turva, quando passei pela imensidão branca. Caindo e caindo. Sentindo um enorme frio na barriga, sem entender o que diabos estava acontecendo comigo. Onde eu estava e para onde estava indo (ou caindo).

13. O branco foi ao poucos sendo substituído pela imensidão azul que eu havia visto antes, só que dessa vez, de alguma forma, a imensidão estava ainda maior. Eu estava tendo uma visão mais ampla daquele lugar e posso dizer que era como estar olhando diretamente para o infinito. 

14. Caindo. Mas desperto e perfeitamente consciente, eu podia observar certos detalhes daquele cenário, podia ver outros seres celestiais iguais aquele que eu tinha visto anteriormente. Mas eu os enxergava a uma distância significativa, e eles mais pareciam pequeninas formigas voadoras. Que se dispersavam conforme eu ia me aproximando. 

15. Acho que se passaram cerca de 20 minutos, eu ainda estava caindo na direção do infinito. Desejando que aquele martírio acabasse logo, pois já estava cansado daquela queda. Se aquele era o paraíso, eu não queria estar lá;

16. E foi então que ouvi um som de metal que vinha na minha direção, vibrando muito, levemente no início, mas que aumentava cada vez mais. Até chegar ao ponto de doer em meus ouvidos. Sentia gosto de metal em minha boca e até minha carne estava em êxtase naquele momento. Meus braços estavam arrepiados e meus olhos doíam muito.

17. Lágrimas caiam de minha face, fazendo minha visão ficar turva. E tudo ao meu redor ficou molhado. As nuvens começaram a expelir água exatamente como eu estava fazendo e iniciou-se uma chuva que caia na direção contrária a mim. Eu descia e ela subia.

18. Formaram-se nuvens de tempestade, raios e trovões lampejavam a minha esquerda e direita. E o som de metal ficou mais alto do que nunca. Trovejando como se fosse um trovão, mas não era exatamente, pois estava continuo e ficando cada vez mais alto. Cada vez mais forte.

19. Em meio as nuvens escuras de tempestade, uma figura corpórea surgiu no horizonte, abaixo de mim. Tinha um formato cilíndrico, com enormes anéis a sua volta, giravam tão forte que provocava muita ventania a sua volta. Atrás da criatura havia dois pares de asas enormes que batiam em ritmo descompassado, sumiam nas nuvens e apareciam novamente, sempre em constante movimento. E no meio, o que configura como sendo o cerne da criatura, havia um enorme olho, branco, com a íris sendo um azul-escuro forte e impactante. 

20. Era gigantesco. Quanto mais eu caia e me aproximava da criatura, mais distante ela ficava. Mais distante, cada vez mais distante e maior. Era como se fosse um enorme planeta vivo, vivendo entre as nuvens. E eu estava indo na sua direção. 

21. Perdi a noção do tempo. Tanto tempo se passou que acabei perdendo os sentidos, posso ter adormecido, mas não poderei afirmar com certeza. Porém, algo me despertou por completo, novamente senti aquela enorme pressão em meu peito. A imensidão vermelha voltou, rapidamente como se fosse um flash, e voltou a sumir. Só então percebi o quanto eu estava próximo da gigantesca criatura; o olho olhou para cima na minha direção, as asas batendo e os anéis girando.

22. Foi então que comecei a entrar em sua atmosfera. De fato, aquilo se assemelhava muito a um planeta. No céu tinha nuvens brancas, era onde eu estava, e abaixo de mim pude observar uma enorme floresta verde, que se estendia para o infinito. Tinha um rio azul cortando por entre a mata verde e havia também algumas criaturas vivendo naquele lugar.

23. Fauna e flora, vivendo no enorme olho que agora me engolia.

 

A semeadura da prole do homem.

1. Choquei-me contra o chão depois de muito tempo após dar início a minha queda. Um tempo que nem me atrevo a contabilizar. Sinto que foram meses, mas acho que não chaga a tanto. Talvez algumas semanas. Mas mesmo caindo a toda velocidade, não fiquei ferido por causa da queda, meu corpo não sofreu qualquer avaria. Parece que era uma versão melhorada de mim. Santificada.

2. Olhei em volta e percebi que apesar de estar dentro da "criatura olho", o lugar não era muito diferente do meu planeta de origem. Só era mais selvagem. O lugar onde caí tinha apenas vegetação. Árvores enormes, cuja tonalidade das folhas era de um verde bem mais escuro que o habitual. E todas elas apresentavam algum tipo de fruto nascendo de seus galhos. Frutos que eu não conhecia. Frutos que não existiam no planeta terra. Pareciam deliciosos.

3. Minha convivência naquele planeta resumiu-se na mais pura curiosidade de conhecer o local. Eu tinha certeza que ele jamais havia sido explorado por outro ser humano. Então eu era o primeiro. Viajei pela floresta, andando pelos montes, pulando as enormes pedras e nadando para atravessar os rios. Não tive medo de machucar-me nem de ser importunado por animais selvagens. Eu já tinha chegado a conclusão de que meu corpo estava imbatível e nada poderia me machucar.

4. Mas de qualquer forma não precisei mesmo ter esse tipo de preocupação, os animais daquele lugar viviam na floresta, mas não eram selvagens. Avistei cobras que não tentaram injetar em mim seu veneno, nem me sufocar com a extensão de seu corpo, elas apenas viam até meus pés e erguiam seu enorme pescoço na minha direção, como se estivessem curiosas para conhecer a "criatura – homem" que invadia seu habitat natural. Avistei onças que eram manhosas como gatos de estimação e leões que eram tão perigosos quanto cachorros domésticos.

5. Não sei ao certo quanto tempo se passou desde a minha chegada. Minha única certeza é que se passou muito tempo, percorri a passos largos as trilhas das florestas, sobrevivendo de frutas e água fresca, não foi nada difícil, ao contrário, era bem prazeroso, pois minha única preocupação durante esse período era não ter preocupação alguma. Eu estava experimentando uma espécie de "paraíso", uma versão alternativa do jardim do éden. E pude ter essa certeza quando algo a mais cruzou meu caminho.

6. Ao caminhar pelos rochedos mais baixos, onde a umidade costuma ser maior, a procura de água, vejo uma figura fatal se banhando no riacho que havia logo abaixo das pedras. Era uma figura de mulher, a mais bela que já avistei em toda a minha vida. Tinha cabelos longos, negros como a noite, e seu corpo era uma bela escultura feita a mão, pelo melhor dos artistas. Estava completamente nua, e fazia carícias por toda a extensão de seu corpo. Interpretei aquele gesto como uma alma carente precisando de amor.

7. Era uma mulher de poucas palavras. Tinha uma inocência admirável. Disse que nunca tinha visto um homem antes em toda sua vida, e que estava sozinha há muito tempo. Ficou feliz que agora teria companhia. E em nenhum momento sentiu-se envergonhada de sua nudez. Seu sobre era Evangeline.

8. Tomei-a para mim, como minha esposa, e ela se entregou em meia braços facilmente, graciosa como uma flor. Nossa primeira vez foi debaixo de um enorme salgueiro, aconteceu espontaneamente e quando vimos, já estávamos nos amando. 

9. E quando estávamos prestar a terminar nossa cópula, fui novamente invadido por uma pressão insuportável em meu peito, o mundo ficou vermelho e a presença de Evangeline tornou-se indiferente para mim, pois minha dor era muito maior que meu prazer. Três pontadas de dor e em cada uma delas minha visão escurecida, o mundo tornavam-se trevas e em meu íntimo eu estava pedindo para morrer, pois não queria mais sofrer.

10. Aconteceu que obtive o mais sincero desejo de meu coração revelado, quando perdi os sentidos e novamente afundei no abismo da escuridão eterna, aquela que me trouxe ao paraíso e que me revelou o inferno. 

11. Vermelho. O mundo ficou vermelho, várias pontadas em minha visão. Evangeline desaparecia com sua beleza exuberante e voltava logo depois, só que cada vez que voltava, não era mais como antes. Não estava mais tão bela, tão presente, tão entregue às minhas carícias. 

12. Vermelho. 

13. E então a escuridão. 


Terra.

1. Quando despertei de meu sono, vejo médicos a minha volta, tentando reanimar-me, pois após meu acidente tive inúmeras paradas cardíacas e até estive morto por alguns minutos. Posteriormente o médico responsável me contaria em detalhes tudo o que passei aqui na terra. Porém, o que passei naquele outro plano, somente eu poderei contar a quem interessar possa;

2. Ao que parece, passei exatamente 13 minutos em uma espécie de coma, com os médicos tentando me trazer de volta e não surtindo resultados. Fui dado como morto por exatamente dois minutos (segundo minha interpretação pessoal, foi nesse período que passei ao lado de Evangeline naquele outro plano), mesmo que para mim tenha se passado alguns meses, segundo minha noção pessoal de tempo.

3. Nunca me desconectei completamente de tudo aquilo que vi e ouvi, sei que existem outros mundos para além desses. Acho que estive no céu, pois avistei anjos. Acredito que estive no paraíso do éden me deitei com uma bela mulher, a quem dediquei meu amor e desejo no tempo em que estive na sua presença. 

4. Tenho tido sonhos desde então, às vezes vejo aquela bela criatura sem gênero definido fugindo pelos céus, voando graciosamente para longe de mim, e gritando a plenos pulmões "você não deveria estar aqui! Filho do homem!", e quando essas palavras chegam a meus ouvidos o lugar tornai-se trevas, a luz se acaba e o chão começa a sumir de meus pés, e novamente estou caindo na direção do abismo. Caindo, eternamente, e quando me aproximo do "planeta olho", seus olhos ficam vermelhos e cheios de ódio e fogo, e em uma rajada de enxofre lançadas na minha direção, acabo sendo consumido pelas chamas e apagado para sempre da existência.

5. Em outro sonho, esse mais belo e tranquilo, vejo Evangeline sofrendo pela minha ausência. Vivendo uma vida de solidão naquele belo jardim. Vejo que ela decidiu enterrar-me em um lugar especial do jardim. Um lugar de destaque, para que ela fique descansando enquanto se lembra de seu amado. Após um tempo, começou a brotar da terra uma pequena muda de planta, que logo foi crescendo e tornando-se uma enorme árvore frutífera. Não reconheço seu fruto, porém, Evangeline parece gostar muito de seu sabor, pois sempre que saboreia dessa fruta, ela cai em prantos, lembrando de seu antigo amor. Em meu sonho, certa vez, ela o chamou "fruto de Olegário. Enquanto separava algumas sementes para plantar mais.

6. Sei que todas essas coisas são reais. Em algum plano da existência que desconheço Evangeline está a minha espera, sonhando com meu amor. Ela é a única mulher em sua morada, e seu único homem foi-se embora sem dizer adeus, e sem deixar em seu ventre uma nova criatura. 

7. Preciso voltar. Preciso amar Evangeline novamente e assim criar uma nova história na humanidade. Com novas pessoas, através de nossa geração. Não como Adão e Eva, que caíram em tentação e foram expulsos do jardim. 

8. A história de Evangeline e Olegário seria diferente, pois Olegário já tinha conhecimento entre o bem e o mal, e agora estava conhecendo um bem muito maior. O próprio paraíso. E dele não queria sair jamais.

9. Me chamo Olegário, eu estive na eternidade por alguns minutos, mas para mim passaram-se anos. Eu estive na eternidade e ela é muito mais longa do que se pensa. 

10. Muito mais longa do que se pensa!

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