Aquele que diz amém - Conto

Tang
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01) Sentado na penumbra do estúdio, em um silêncio melancólico e provocante, o escritor acendia mais um de seus cigarros. Esse deveria ser o terceiro ou o quarto que ele tragaria e a entrevista ainda nem havia começado. O cheiro de sua fumaça invadiu o ambiente quase que por completo, pois era um local fechado e sem muita ventilação, abafado, pois todas as filmagens eram feitas ali e não podiam ter a interferência de qualquer poluição sonora que viesse de fora. De modo categórico, ele levou o cigarro aos lábios, tragou, puxou a fumaça e a soltou, deu um sorriso sarcástico para o entrevistador que o observava e voltou a ficar perdido em seus próprios pensamentos, sem se importar com o que acontecia a sua volta. Só se escutava sons de passos que iam e viam, a equipe de filmagem corria para deixar tudo pronto e arrumado, pois a entrevista não tardaria a começar. Lyonel Lafaiete era o entrevistador, famoso por suas perguntas provocantes e diretas, que não davam muitas voltas e tocavam em certas feridas de seus entrevistados, o resultado quase sempre era positivo, eles se sentiam provocados e revelavam detalhes da vida e de seus trabalham que até então estavam escondidos no mais secreto de suas almas. Era isso que ele pretendia fazer com seu próximo interlocutor. Estavam sentados de frente um para o outro. Às vezes trocavam olhares, às vezes trocavam sorrisos, Lyonel mexia em papéis, revisava as perguntas que seriam feitas, às vezes fazia correções, às vezes reescrevia algumas frases, mas de modo geral estava pronto para efetuar seu trabalho de modo professoral. Era um homem charmoso, parrudo, exibia uma soberba barda de cabelos negros que fazia seu público feminino suspirar de desejo e o masculino, se espelhavam em sua beleza intelectual e, no fundo, sonhavam em ser como esse homem. 

O entrevistado era um autor de livros relativamente famoso, seu nome é Logan Arthur Barbarossa, escritor de romances e contos de sucesso, escreveu algumas crônicas, em sua bibliografia também podemos encontrar um livro de cartas (cartas de caráter pessoal que não foram escritas para serem publicadas) e também duas histórias de literatura infantil. Leva a fama de ser hermético e monossilábico, apesar de suas histórias terem uma quantidade de páginas considerável, mesmo as menores podem ser chamadas de romances. Ele não parecia nervoso ou preocupado, estava perfeitamente relaxado e pronto para o que se seguiria dali em diante, estava na metade do terceiro cigarro e parecia querer sempre mais. 

- Você comentou que começou a escrever uma nova história… - Lyonel perguntou, sua voz era grave e muito lembrava a de um locutor de rádio. Ela invadiu o ambiente e o preencheu, era bonita.

- Não. Eu comentei que acabei a história. - Disse Logan, a voz de Logan não tinha a mesma potencia, era anasalada e um pouco arrastada. Logan falava como se estivesse cansado e preguiçoso, ele falava como se não tivesse forças para falar.

- E qual seria o título dessa nova história?

- Eu tenho 13 títulos em mente, ainda não escolhi nenhum - Logan tragava a cada frase - Quando eu escolher um título definitivo, falo para você.

Lyonel assentiu. Corrigiu uma informação em um de seus papéis. E voltou a folhear. 


Tudo estava pronto e todos estavam a postos, excitados por estarem realizando mais um trabalho (que, supunha eu, seria bem-sucedido). Logan ameaçou acender mais um cigarro, o cinzeiro que estava a seu lado estava começando a ficar lotado de guimbas, e então ele hesitou ''Fumar é elegante, mas um cinzeiro sujo é degradante'' pensou, era uma frase que seu costumava dizer sempre que via seu maço de cigarros chegar ao fim, Belizario Barbarossa morreu de câncer quando Logan fez 17 anos. Naquele mesmo ano Logan começou a fumar e mantinha o habito até hoje. Mas ele não acendeu esse outro, decidiu esperar pela entrevista. Pegou rapidamente em seu bloco de notas onde ele costumava anotar algumas ideias para contos, mas também alguns de seus afazeres, foi até a última página e leu rapidamente o que estava escrito, ''Entrevista com Lyonel dia 01/07. Não fumar mais do que sete cigarros. Falar o menos possível.'', ele já estava indo para o quarto cigarro e a entrevista nem começou ainda, tarefa não cumprida, mas até então havia falado muito pouco com o homem sentado a sua frente desde que chegou naquele lugar, tarefa cumprida. A entrevista começaria dentro de poucos minutos.


''Retirado do programa 'Panorama Diurno' exibido em 1977 em uma rede de televisão.''


- Logan Arthur Barbarossa. De onde veio esse ''barbarossa''? - Lyonel começou fazendo uma pergunta de entrada simples e direta, para cortar o gelo e deixar o entrevistado a vontade, isso era de praxe.

- Eu não sei. Eu perguntei a meu pai desde quando havia 'Barbarossa' na família e ele me respondeu que de gerações em gerações esse nome foi passado. Eu imagino que ele foi perdendo algumas sílabas e se tornou essa coisa que não quer dizer nada, mas que ofende a quem o compreende como sendo uma referência a invasão da união soviética pelos nazistas. A invasão foi chamada de ''operação barbarossa'', mas minha família se originou na Turquia, então eu imagino que a origem do meu nome seja da lenda do pirata Barbarossa, chamado por sultão Solimão, o magnífico. Quando eu publiquei o meu primeiro livro, um crítico da época o chamou de petulância desagradável e pediu para que minha obra fosse retirada das livrarias. Ele achou que meu nome fazia apologia ao nazismo. 

- Você conheceu esse critico pessoalmente?

- Não porque assim que publiquei meu primeiro livro fui embora do Brasil. O livro foi um sucesso de vendas e eu nem fiquei sabendo, tanto que me surpreendi quando cheguei aqui e descobri que as pessoas sabiam qual era o meu nome, eu não era mais ''Barbarossa, o nazista'', eu era Barbarossa, autor de ''A paixão segundo o que lhe diz respeito'', o livro foi muito bem-sucedido e foi gratificante, né?


Logan fez um sorriso felino assim que deu sua resposta, seu olhar era penetrante e acusador, nas entrelinhas, ele estava dizendo muitas coisas, que algum desavisado certamente não entenderia, sua linguagem corporal era secreta e obscena, no fundo, ele estava desejando para que aquele tal critico um dia assistisse aquela entrevista e engolisse em demasia sua acusação infundada, Logan queria vê-lo engasgar, sufocar, pois só através dessa penitencia lhe daria seu perdão. Talvez.


- Á alguém da família Barbarossa que chegou a escrever alguma coisa?

- Bom, eu soube recentemente que mamãe escrevia poemas em um caderninho que ela escondia debaixo do colchão. Não contou para ninguém que fazia isso, não permitiu que ninguém lesse, muito menos que publicassem sua escrita. Era algo secreto que pertencia somente a ela própria.

- Você chegou a ler alguma coisa que sua mãe escreveu?

- Não. Eu soube disso a pouco tempo. Uma tia minha comentou ''você sabia que sua mãe também escrevia histórias?'', fiquei boquiaberto, chocado, mamãe faleceu quando eu tinha 18 anos, logo depois que papai faleceu. Talvez ainda existe um de seus cadernos em nossa antiga casinha, mas não volto lá tem uns bons 20 anos.

- Uma curiosidade comum entre seus leitores e minha também, gostaria de saber quando e como você começou a escrever suas histórias.

- Eu confabulava comigo mesmo desde muito pequeno, criava histórias na cabeça, narrativas, antes mesmo de saber ler ou escrever eu já criava, só não as colocava no papel por falta de ferramentas para fazer isso acontecer. Eu me lembro que existia uma angústia solitária dentro de mim que eu precisava colocar para fora, precisava externalizar isso de alguma forma, então eu escrevia - Logan fez uma longa pausa, esporadicamente ele olhava diretamente nos olhos do entrevistador de modo penetrante, mas na maioria das vezes estava olhando para o chão, para o absoluto nada, perdido em seus próprios pensamentos, perdido em si próprio - Por exemplo, eu escrevi uma história que não acabava nunca, quanto mais eu confabulava, mais eu criava, e a história não tinha fim.

- Você poderia nos dar uma noção do que era o jovem escritor Logan Barbarossa?

- Caótico. Intenso. Completamente alienado da realidade da vida. Tinha tantas ideias que queria colocar pra fora que eu escrevia meus contos como se fossem vômitos. Essa sujeira que eu tinha que externalizar a todo custo. 

- Você se lembra como foi o processo de publicação de seu primeiro romance?

- Eu tinha várias histórias que carregava comigo debaixo do braço, e eu entrava nas revistas e jornas com uma timidez enorme, mas era uma timidez petulante e ousada, que me fazia chegar lá e apenas perguntar se queriam publicar minha história. Um dos redatores, certa vez, me perguntou se eu tinha copiado um dos meus textos de alguém, ou se eu tinha traduzido, ele achou aquilo de tamanha qualidade que não acreditou que eu havia escrito. Mas meu texto era tão característico de mim, que logo quanto me conheceu melhor ele acreditou que somente eu poderia ter escrito aquilo. Então foi publicado. Era assim. 

- Logan, a partir de qual momento da sua vida você decidiu assumir sua carreira de escritor profissional?

- Eu nunca assumi nada. Eu não sou escritor profissional. Sou amador e faço questão de continuar sendo amador. Profissional é aquele que segue um cronograma de trabalho diário, eu não sigo regra nenhuma, só escrevo quando quero. Só escrevo quando surge em mim uma ideia que possa ser proferida em palavras - ele ponderou - Nem toda ideia pode ser mensurada em palavras. Então eu as guardo para mim. As que consigo transformar em conto, acabo publicando, porque ao que parece as pessoas gostam de ler o que escrevo.


''A entrevista feita por Lyonel no ano de 1977 é considerada por muitos um patrimonio cultural de seu país, aconteceu que em certo momento as perguntas foram ficando cada vez mais incisivas e provocativas, e o entrevistado se desnudou de sua vergonha e deixou que sua alma ficasse exposta para quem quisesse apreciá-la. Sua alma melancólica e genial, que flerta com a depressão como se fossem amantes.''


- Você escreveu duas histórias de literatura infantil. Como você explica Logan Barbarossa voltado para criança?

- Assim que acabei meu romance mais longo até então, eu fiquei no mais completo limbo por dentro e a vida para mim ficou intolerável. Então me lancei em um livro de literatura infantil na esperança daquilo me preencher novamente. Descobri que sou bom em escrever histórias infantis, ainda me lembro da minha versão de quando eu era criança, ela ainda é viva para mim, o que é uma surpresa já que para a maioria das pessoas sua criança já não existe mais e ela torna-se um completo mistério. Mas a minha ainda existe.

- O que é mais difícil, comunicar-se com a criança ou com o adulto?

- Quando me comunico com a criança, é fácil porque eu sou muito paternal. Quando me comunico com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesmo, então é mais difícil, né?

- Logan, sua vida pessoal deixou de ser um mistério para seus fãs quando foi descoberto que você faz uso de substâncias alucinógenas para compor suas obras. Você acha recomendável pessoas que sonham em ser escritor fazer uso dessa prática para exercitar a arte da escrita criativa?

- Não. Porque eu comecei a escrever muito antes de descobrir a medicina. A medicina veio até mim para me dar uma resposta em relação às coisas que eu escrevia, mas não entendia. É um enteógeneo que te faz ter uma viagem de instrospecção para dentro de si, e como já sou naturalmente introspectivo, fui um pouco mais longe que os demais usuarios da medicina. Um pouco mais para dentro de mim. Por exemplo, criei uma história que não acabava nunca, quando eu era criança, e isso perdurou durante toda a minha vida - Ele fez uma pausa quando percebeu que poderia estar sendo hermético demais, de praxe, talvez as pessoas não estivessem entendendo o que ele estava querendo dizer - É muito complicado de explicar essa história, e eu continuo escrevendo. Mas a medicina me ensinou que, na verdade, aquilo era o universo em mim, e eu ainda o estava construindo em palavras, o que significa uma infinidade de possibilidades dentro da história, todas aquelas pessoas, lugares, animais, o universo e tudo o que há nele. A história não acabará a menos que haja uma apostásia desse meu universo, se abdicarem da minha criação e passarem a acreditar em outro criador, então outro ser traçaria o destino daquela realidade e eu estaria livre dela.

- Curioso você dizer que a história é ''o universo em você'' o que você quer dizer com essas palavras?

- Todos nós possuímos uma infinidade de universos em nosso subconsciente. Somos todos criadores da realidade e nela vivemos, mas existem várias outras, desconhecidas por nós porque nos recusamos a enxergá-las. O que eu faço é justamente colocar em palavras e dar vida a todos os outros mundos que existem na minha mente e na minha alma. Se todas as pessoas do mundo fizessem isso, talvez descobriríamos o sentido dessa nossa vida, não é mesmo?

- Eu sinto uma pontada de ironia na sua resposta, você acha que não existe um sentido para a vida como a conhecemos?

- Talvez exista. Mas desconhecemos, estou buscando essa responsa desde que nasci e ainda não a encontrei.

-   Entre seus diversos trabalhos, é natural ter um filho favorito, qual é aquele que você gosta mais?

- Gosto muito do conto ''Rubra rosa-amarela'', aquilo é um universo desconhecido por mim mesmo após escrevê-lo, para mim é um mistério. E também uma coisa que escrevi sobre uma garota ingenua e pobre, que não aprendeu a distinguir o que é a dor física e a dor na alma. Ela acredita nas boas intenções das pessoas porque enxerga as pessoas consoante a própria imagem. Eu a matei no final da novela de maneira trágica, porque sua inocência fora pisada e machucada durante toda sua vida, então achei que a morte para ela seria misericordiosa. E quando experimentei a medicina, através do chá de ahayuasca, eu a vi no pós-morte fazendo uma oração pela própria alma, ela estava orando em penitência pedindo para que seu Deus a libertasse de seu martírio. Eu sou seu criador, então eu sou seu Deus. Ela estava orando para mim, eu sou aquele que diz amém para suas oraçoes.

- E o que ela dizia nessa oração?

- Ela passou a vida inteira sentindo dor na alma. Com saudades dos pais que morreram muito cedo a deixando sozinha. Se ela tinha alguma esperança na vida, era de encontrar seus genitores no além-vida, mas isso não aconteceu, porque não escrevi isso acontecendo. Em sua oração, ela implorava para que esse encontro acontecesse, para ela matar a saudade que a estava matando. Ela queria morrer pela segunda e definitiva vez.

- E o que você fez?

- Nada. Não se pode mudar o que já foi escrito, pois o livro já tinha sido publicado há muito tempo e agora Candelária (esse era o nome dela) existia também na mente de outras pessoas. E eu já não podia mudar nada em seu universo, pois ele já não pertencia somente a mim. Esse é o problema de colocar uma história para fora e divulgá-la ao público, a história passa a ser de domínio publico e não somente sua.

- Você diz que é Deus para seus personagens. Você se considera um Deus cruel?

- Com certeza. Se eu soubesse desde o início que estava lidando com uma realidade dentro da ficção quando escrevo minhas histórias, talvez eu não teria sido tão cruel com meus personagens. É que, na verdade, escrevo sobre minha própria angústia através deles, então minha melancolia acaba pesando em suas vidas. Meus personagens viviam a mercê da minha crueldade e não tinham para onde correr. Escrevi sobre alguns personagens que também eram escritores. No meu livro ''Sob o julgo da raiz operária'' o personagem Napoleão escrevia poemas que flertavam com a morte por estar cansado demais da vida cruel que levava, sendo um operário da indústria têxtil em plena resseção no país, ou seja, era pobre como Jó, ele transcrevia suas dores através de seus poemas. Um de seus poemas era um desabafo sobre a crueldade divina que recaia sobre ele, sendo eu seu Deus, Napoleão estava maldizendo minha existência através de suas palavras e eu o castiguei no final do conto, durante uma crise de depressão e ansiedade ele queimou todos os seus poemas e depois atirou contra a própria vida.

- ''Sob o julgo da raiz operária'' foi um grande êxito em seu ano de publicação, considerado por muitos um desabafo melancólico da classe operaria em um país onde a profissão da classe C é muito desvalorizada. A que você atribui esse sucesso?

- Acho que todos se identificam com Napoleão e sua apostásia, o fato dele amaldiçoar seu Deus sem muitos filtros, de modo intelectual, mesmo sendo apenas um proletário como outro qualquer. É um desabafo, um grito de socorro direcionado a uma figura divina que lhe prometeu socorro e só entregou dores e decepção. Seu suicídio no final foi uma atitude rebelde de um filho como quem diz que a partir dali ele tomaria o controle de sua própria vida, se estivesse morto eu já não poderia atormentá-lo com minhas palavras. Napoleão percebeu que quem escrevia sua história era eu e percebeu que já não poderia viver assim, sua atitude foi a busca pela liberdade e gosto dele por causa disso.

- Então podemos supor que seus personagens possuam livre arbítrio?

É um paradoxo, ao mesmo tempo que considero sua atitude um ato de rebeldia em busca da liberdade, não podemos ignorar que até mesmo o fato dele fazer sua própria vontade e não o que planejei foi escrito e desenhado por mim, pois antes mesmo de o conceber eu já sabia qual seria seu fatídico destino. Internamente eu já sabia. Então se pararmos para pensar, que escolha ele teve?

- Você declarou certa vez que tem o costume de rasgar alguns de seus trabalhos. Isso seria um produto de reflexão ou uma introspecção emotiva do momento?

- Sabemos hoje através da ciência que todo universo um dia terá fim, uma combustão espontânea através de si mesmo. O que faço é encerrar o caos que eu mesmo criei, misericordiosamente dando um fim ao martírio de pessoas que oram por liberdade. Mas não posso fazer isso aleatoriamente, pois encerrar uma história na metade de seu curso seria interromper o suposto livre arbítrio que elas têm. Mas às vezes o caos é tamanho que a única solução é dar um fim a sua existência, então eu rasgo. Uma das minhas histórias que eu deveria ter rasgado é ''Rubra rosa-amarela'', mas naquele momento a editora me pediu uma história com urgência para aquele semestre e eu não tinha mais nada, então ao invés de rasgá-la, eu publiquei. 

- Você se arrepende de não ter rasgado?
- Eu não diria que me arrependo. Mas ainda hoje sinto o caos da história me arrebatando em minhas noites insones. Ela me puxa para o infinito e me arrebata, e então eu morro. Agora estou morto, vamos ver se renasço novamente, em um próximo trabalho.

''A entrevista se encerrou momentos após essa reflexão de vida e morte, em cima disso podemos analisar se isso é o resultado de uma genialidade fora do normal ou de uma depressão profunda de um homem amargurado. Nossos estudiosos apostam na primeira opção, mas ainda temos certas dúvidas em relação a isso. Logan Barbarossa nunca mais publicou outra história e não tivemos noticias se ele voltou a escrever algo, então podemos supor que ele não renasceu em um suposto 'proximo' trabalho. Ele está morto.''


Retirado de ''A incerteza da vida e a certeza de seu final'', livro de contos e poemas escrito por Napoleão, encontra-se no livro ''Sob o julgo da raiz operaria'':

A dança da loucura mórbida''Citado na icônica entrevista feita em 1977, o texto foi alvo de análises feitas por seus fãs, apontado como uma conexão indireta do que havia sido dito anteriormente pelas palavras do autor como um ''desabafo, resultado de uma rebeldia ficcional que flerta com a realidade'' aparentemente trata-se uma carta aberta feita pelo personagem principal direcionada ao autor da obra "Logan Barbarossa", pouco antes de suicidar-se. 

2) Logan ficou feliz com a repercussão de sua entrevista, mesmo após dois anos as pessoas ainda confabulavam suas palavras como se fosse o suprassumo da genialidade, mas sua avaliação pessoal diria que aquilo foi só um desabafo melancólico de alguém que está cansado de ser totalmente introspectivo em um muito de pessoas que falavam demais e pensavam de menos. O tratavam como se ele fosse um animal em exposição num zoológico documentado. Ele compreendia esse comportamento, só não gostava muito dele, mas suas falas, aliadas ao contexto das palavras, indicavam que escrever histórias era ter um universo inteiro em suas próprias mãos (o que era de fato uma verdade) e isso fez com que, parte da audiência, isso é, vários jovens, desenvolvessem o desejo de escrever também. Muitos escreveram e publicaram, alguns apenas escreveram e ainda escreviam, já outros apenas liam o que os outros escreviam, mas isso foi o suficiente para que muitas universidades enviassem cartas a Logan o parabenizando pelo "incentivo total da literatura a essa nova geração", isso foi gratificante e fez tudo valer a pena.
Ele agora estava na cidade que morou com seus pais e irmãos em sua infância. Já não a visitava tinha muitos anos, e muita coisa mudou, não tanto assim por ser um local parado no tempo, mas mesmo o atraso do tempo não conseguia frear a ação da morte, seus pais morreram e agora o casebre de madeira que eles moraram, estava vazio. Logan supôs que a essa altura alguém estaria morando ali, muito provável que fosse algum morador de rua, mas estava vazio, e ele constatou que não teria de pedir permissão para entrar e vasculhar o que tivesse escondido no casebre (se tivesse alguma coisa) ''graças a Deus'' pensou, subindo as escadas que o levavam até a porta de entrada, lascas de madeira quebradas estralavam sempre que ele colocava os pés, Logan teve receio de tudo vir a baixo com ele lá dentro, mas isso não o impediu de entrar.
O cheiro de mofo era forte, também havia algo podre bem no fundo, os moveis eram antigos, feitos com madeira, de modo que ainda estavam em boas condições, apesar de serem bem velhos. Mas tudo ainda estava como Logan se lembrava. A nostalgia de sua pobre infância o invadiu e a saudade de sua mamãe também. A falta que nunca foi embora, ele apenas se acostumou a conviver com ela como se fosse uma velha amiga.
Seguiu até o quarto que fora de seus pais e ali havia apenas uma cama velha (e em cima tinha um colchão que já estava em estado de decomposição) e um guarda-roupa que das quatro portas, faltavam três, mas na única porta que estava de pé havia um espelho sujo que ficava de frente para a cama. Lembrou-se que certa vez sua mãe dissera ''Não gosto que o espelho fique de frente para nossa cama, nos observando enquanto dormimos, minha avó sempre dizia que isso dá azar'', e então toda noite antes de dormir ela abria a porta do guarda-roupa e a deixava aberta, de modo que o espelho ficasse a noite toda virado para a parede e não mais se podia ver o reflexo de seus pais durante a noite. Agora, estava fechado e virado para a cama.
Sem demora, ele levantou o colchão, fazendo subir uma enorme nuvem de poeira que fez seus olhos lagrimejarem e ele conteve um impulso de tossir até expelir seus pulmões pela boca. Quando passou esse excesso de rinite (o que era estranho, ele não tinha isso em condições normais de sua vida), observou que embaixo do colchão, sob a estrutura de madeira da cama, havia algumas camisinhas usadas, guimbas de cigarros, revistas de conteúdo adulto que certamente pertenceram a seu pai, papeis que pareciam ser documentos importantes ''que nunca terão utilidade, mas ainda assim é importante guardá-los'', diria Clarice, a mãe de Logan, e bem no canto, escondido por um pedaço de pano sujo, havia um pequeno bloco de notas da capa marrom, provavelmente uma imitação de couro, era o diário de sua mãe, aquele que ela costumava escrever algumas histórias e pensamentemos. Logan tinha curiosidade em saber sobre o que sua mãe escrevia, que tipo de história, e após sua entrevista essa curiosidade intensificou-se a níveis absurdos. A editora lhe pediu algum texto de sua mãe para que fosse publicado, ofereceram uma pequena fortuna, mas não era pelo dinheiro que Logan estava fazendo isso. Ele queria saber se sua mãe também tinha capacidade de criar universos inteiros através de sua escrita, como ele costumava fazer. Como todo escritor costuma fazer. 
Pegou o diário de sua mãe, não era muito grosso em quantidade de páginas, mas o abriu e percebeu que a letra de sua mãe era pequena e delicada, então o tamanho simplório do livrinho não faria muita diferença nesse sentido. Logan o abriu e começou a ler.
 
''Retirado do diário de Clarice Barbarossa'', a leitura estava nesse momento sendo feita por seu filho, Logan; são fragmentos aleatórios que não formam uma narrativa coesa, mas trata-se aparentemente de um mesmo personagem em diferentes momentos de sua vida:

(P. 12) ''Meu menino, cujo nome é um mistério, tinha dentro de si o poder da criação e não sabia disso. Que problema há de ter em vida, sendo ele o próprio criador? Pergunto-me, enquanto me vanglorio por ser sua criadora. Faço de mim mesma sua natureza secreta, é para os meus braços que ele corre quando tropeça em algum obstaculo que está em seu caminho e cai no chão, ralando seus joelhos. Seu choro é uma pontada em meu coração, me machuca e me faz chorar com ele, mas escondo minhas lagrimas de sua visão, pois o menino não pode saber que sua progenitora também sabe ser frágil e pequena... ''. 

(P. 22) '' O jovem rapaz caminha sorrateiramente pela avenida de alguma grande metrópole, a caminho de uma gráfica de jornais famosa na época. O tempo não sei. Debaixo de seu braço direito havia um pequeno conto escrito por ele (mas assinado por mim) e ele deseja muito que o conto seja publicado pelo jornal, para que todos possam lê-lo, o rapaz sabe que seu trabalho é bom, mas fica curioso em saber se outras pessoas saberão, se irão reconhecê-lo como sendo bom. Ele se compreende e sabe o que faz, mas isso não significa que outras pessoas o compreenderão… ''

(P. 24) ''O dono da banca leu seu conto, entre uma xícara de café quente e um cigarro, pigarreou três vezes, assou o nariz duas vezes, e fez duas releituras, sem dizer uma só palavra, e o rapaz aguardava ansiosamente para saber a opinião do editor de jornal sobre sua escrita. Quando finalmente ele levantou os olhos, estavam levemente marejados e o rapaz ficou em dúvida se 'a emoção' era culpa de seu conto ou se era resultado da rinite, provavelmente a segunda opção. ''Você copiou isso de quem?'', perguntou o editor do jornal, e o rapaz, ofendido, disse ''De ninguém, é meu!''. 
E o homem a sua frente apenas respondeu ''O universo é seu''.

(P. 25) ''O conto do rapaz, que se tratava de um arrogante editor de jornal que foi incapaz de compreender a escrita de um jovem autor por achá-la complexa demais para seus leitores leigos (leia-se burros) criando assim um pequeno debate entre os dois homens, a conclusão da discussão foi que o leitor não precisa ser lá muito inteligente, porque ele está na parte debaixo dessa piramide. O criador da história estava a cima de todos, então ele sim precisava ser inteligente, ele é quem precisava entender do que se trata a história. O conto tinha pouco mais de 10 páginas, era curto e sucinto, foi publicado e foi um sucesso, o jovem rapaz, a partir de agora, tornou-se um autor de sucesso.'' 

Logan lia cada um dos fragmentos vorazmente, percebeu já no segundo texto que sua mãe estava descrevendo a vida de um jovem rapaz que muito se assemelha a sua própria vida, mas com algumas mudanças sutis na narrativa, não era uma descrição precisa ''E nem poderia ser'' ele pensa ''Como ela poderia saber dessas coisas antes que elas aconteçam?'' indagou essa dúvida para ninguém, pois ninguém além dele mesmo estava no velho casebre, mas a resposta para essa pergunta surgiu em sua mente de modo categórico, como se sempre existisse em algum lugar de seu próprio ser, só esperando a primeira oportunidade para manifestar-se ''Porque ela é a criadora. Sua criadora. É natural que o criador saiba de tudo e todas as coisas''.

Ficou tonto mediante essa constatação. Respirou fundo e continuou a leitura.

(P. 32) ''Escreveu mais uma de suas histórias. Retirou o papel da máquina de escrever, bufando e com raiva, e o rasgou em mil pedaços. Amassou tudo e jogou no lixo. E começou tudo outra vez. Ele repetiria esse processo pelas próximas duas horas, até conseguir escrever algo que seja digno de permanecer inteiro, e se fosse muito digno, seria publicado. Dessa criação nasceu algo chamado ''Rubra rosa-vermelha'' Uma história caótica que ele teve um enorme pulso de rasgá-la, mas não o fez pois tinha um prazo para entregar seu próximo trabalho estipulado pela editora. Então não rasgou, pegou o texto e o publicou, ficou arrependido de não o ter destruído logo depois, mas agora era tarde demais.''

(P. 43) ''Em sua última entrevista, o homem da qual dedico essa oração revelou ao público o mais secreto de sua alma, mas não intencionalmente (jamais faria isso intencionalmente) e seu exemplo de desnudez interna foi usado por muita gente ao longo daqueles próximos anos, foi admirado pelas próximas gerações, apenas aqueles que eram intelectuais, como um exemplo a ser seguido. Eles queriam ser como aquele genial criador de histórias. E então várias criaturas tornaram-se os criadores.''

(P. 56) Conto Chamado ''O berço primário'', Logan entendeu a mensagem que sua mãe quis passar quando escreveu esse texto. Ele era seu filhote, queria muito voltar para casa, ficar perto da mãe, queria voltar para o ventre que o concebeu. Lamentou que sua mãe não estivesse mais viva para o receber, ele voltou para casa (como sua mãe sabia que aconteceria, antes de acontecer), mas já era um pouco tarde demais para isso.


3) E então ele folheou o bloquinho de notas buscando a continuação de sua história, mas só encontrava outros textos, aleatórios, que não lhe diziam nada com nada, não eram sobre sua vida, e sim sobre a vida de outros pessoas. ''Outras de suas criações, mamãe'', e então achou algo que parecia se tratar da vida de seu irmão mais novo, uma história curta sobre um homem médio que após ter duas filhas com uma mulher que era uma verdadeira tranqueira, que o traia com o vizinho sempre que ele saia de casa para trabalhar, fez uma vasectomia pois não queria ter mais filhos daquela mulher ingrata, mas também não queria largá-la, pois apesar das traições, a amava muito. Muito se assemelha a vida de seu irmão, Peter, mas com algumas diferenças, Peter teve apenas uma filha de seu primeiro casamento, se divorciou quando descobriu que sua mulher o traia com o vizinho. Fez uma vasectomia logo após.

Talvez a criadora dessa história (e desse personagem) tenha realmente traçado o destino de Peter da forma como ela achou que aconteceria, mas Peter, gozando inteiramente de seu livre arbítrio, resolveu escrever sua própria história, indo na contramão do havia sido escrito. Ele fez um caminho mais digno e limpo e Logan se encheu de orgulho por seu irmão.

Folheando quase até o final do bloco de notas de sua mãe, finalmente encontrou algo que parecia ser a continuação de sua história, cronologicamente ele já havia chegado mais ou menos no tempo presente, o que significa que muito provavelmente veria o que sua criadora havia traçado para seu futuro. Estava em êxtase e com medo, sentia um frio na barriga, que era resultado de sua expectativa e excitação. Leu cada palavra do texto como se fosse a última coisa que ele leria em vida, e talvez fosse realmente a última.


(P. 69) ''O desejo de seu coração sempre foi voltar para casa para ficar perto da mãe, mas quando voltou, sua mãe já não mais morava naquele local. E então ele procurou algum resquício de sua progenitora para matar a saudades que o estava matando. Debaixo da cama, repleto de poeira e podridão, havia um curto recado escrito em papel velho que encheu seu coração de dor e tristeza ''Esperei-te por muito tempo, meu amor, mas você não veio a meu encontro da forma que eu havia planejado, tu resolveste traçar o próprio caminho e correu para longe de mim, na direção oposta. E agora, sou eu quem está correndo de ti em outra direção, pois meu tempo nesse universo acabou. Agora te espero em outra vida. Em outra realidade'', e o homem, que um dia já foi rapaz, e antes disso foi menino, ficou parado, de pé na velha casa, processando aquelas palavras e desejando para que aquilo fosse a última coisa que ele leria em vida.''



Epilogo

Quando voltou de sua viagem, depois de passar um certo tempo estudando na introspecção de si próprio, tentou descobrir quanto tempo se passou desde que partira para aquele mundo que só existe no mais secreto de sua alma. O tempo ele não sabe, e descobriu que é indiferente e passa a não querer saber, o mundo externo já não tinha mais tanta importância, pois ele próprio tinha nas mãos a imensidão de vários outros mundos e pretendia conhecê-los muito bem. Trouxe consigo, dessa ultima viagem, o diário que pertenceu a sua falecida mãe, mas trouxe aquelas palavras somente em sua cabeça, pois a viagem de volta para casa foi muito longa e a matéria-prima estava tão velha que se desfez em mil pedaços antes mesmo de Logan colocar os pés para fora do velho casebre, achou então, que não era mesmo para trazê-lo consigo, existem segredos que devem permanecer somente no secreto de nossas cabeças, se alguém colocasse as mãos nas palavras proféticas escritas por sua mãe, seria o fim do segredo, o fim do mistério, e tudo teria sido em vão, sua introspecção, sua vida que já estava destinada a ser o que deveria ter sido antes mesmo dele ter consciência de si. E também seu futuro, que ainda não tinha sido desenhado por Clarice Barbarossa (a autora de sua vida), mas que estava prestes a ser criado, pois agora Logan conhecia muito bem a escrita de sua mãe e tentaria replicá-la com excelência. Da forma como ele acha mais justo, considerando uma visão de seu futuro sendo pleno e feliz, livros de sucesso e uma morte tranquila, talvez ao lado de uma esposa bonita e um filho pequeno para cuidar dela quando ele próprio não estivesse mais aqui; isso aconteceria nos próximos anos, era essa a vontade do próprio Logan (e no secreto de sua alma, compartilhando segredos com sua querida mamãe, descobriu que essa também teria sido sua própria vontade, se tivesse tido mais tempo de vida, certamente seria isso o que ela teria escrito em seu diário), ''que seja feita sua vontade'', ele diz para o quarto vazio, em sua casa de classe média no interior de São Paulo, uma casa grande e bonita, mas vazia, fria, faltava calor humano e Logan pretendia mudar essa realidade quanto antes.


Avistou em cima do criado mudo um copo de vidro de tamanho médio, cheio até a metade de um líquido amarronzado bem escuro, mesmo tendo feito muitas experiencias extrassensoriais naquela semana, ainda sobrara bastante de sua medicina, o líquido sagrado parecia que não iria acabar nunca, parecia que o copo estava sempre meio cheio, nunca meio vazio. A medicina durará enquanto você ainda precisar dela, Logan tinha certeza. 

Sentou em sua mesa de trabalho, onde havia sua velha maquina de escrever e muito papel pólen de boa qualidade, bebeu uma boa dose de ayahuasca, que o invadiu e novamente o faria descobrir um mundo de segredos dentro de si; em poucos segundos a oração de seu espírito começaria. E ele iria viajar naquele enorme universo que existe em sua alma. Os dedos de Logan começaram a dançar nos botoes da máquina e uma história começou a se formar palavra por palavra, era sua história, seu futuro, que agora estava sendo desenhada pelo autor de sua vida, aquele que manipula seu destino da forma como achar mais justo. Se antes, sua falecida mãe havia escrito para ele uma carreira de sucesso, apesar de conturbada e solitária, agora, ele desenharia uma vida brilhante e feliz, uma família a seu lado que o faria viajar para fora, e não mais para dentro. 

Diferente do resto das pessoas que apenas fazem uma oração a um Deus invisível, na esperança que este lhes conceda sua graça. 

Logan é aquele que faz a oração e também é aquele que diz amém.



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